Por Liliane Garcez*

A pandemia, por seu caráter de crise sanitária global, teve como um de seus efeitos o estabelecimento, ou melhor, o desvelamento de barreiras educacionais em termos do acesso, permanência e aprendizagem: estudantes e docentes estavam passando por essa mesma experiência inédita. A necessidade de o sistema educacional organizar formas de ação que respondessem a esse desafio ganhou novos contornos. Mas, afinal, o que aprendemos nesse processo? 

Será que podemos falar em certa equalização das vivências entre estudantes sem e com deficiência, por exemplo? A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU estabelecida em 2006, ratificada no Brasil com status de emenda constitucional em 2008, define que pessoas com deficiência são aquelas que “têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. 

Essa definição contemporânea de pessoa com deficiência, ao evidenciar seu caráter relacional, aponta para uma mudança substancial da própria concepção e do modo de trabalho educacional. Hoje, temos clareza de que nossos esforços devem ser direcionados para que o sistema educacional se torne cada vez mais um Sistema Educacional Inclusivo, tal qual disposto em nossa legislação. E fazer esse movimento só é possível com conhecimento, percepção de todas e de cada uma das pessoas que nele interagem e atuação para quebra de barreiras que impedem o acesso de estudantes ao currículo escolar. 

No momento em que todas e todos foram impelidos a ficar em casa, fomos desafiadas a dar continuidade aos processos de escolarização de estudantes em todo o território nacional. Então, como fazer para não aprofundar as desigualdades e não deixar ninguém para trás? Talvez um movimento potente fosse não tentar fazer de conta que está tudo dentro do roteiro. Fato é que nossas rotinas foram abruptamente alteradas. Não considerar essa ruptura não nos ajudaria a vivenciar novas experiências e experimentar ferramentas diferentes das habitualmente utilizadas. Ou seja, manter o desejo de ensinar demandou que nós, educadoras e educadores, organizássemos ações que acrescentassem possibilidades à execução do direito à educação, e não simplesmente que buscassem substituir ou reproduzir o dia a dia na sala de aula. 

Mais do que nunca, foi preciso colocar em ação um processo que assumisse como pressuposto aquele contexto e que, ao mesmo tempo, considerasse inaceitável a ampliação das desigualdades educacionais. Esse é justamente o princípio básico do movimento de inclusão. Lidar com as diferenças humanas – sejam elas físicas, sensoriais, intelectuais e mentais- como características, e não como defeitos ou faltas, e ir em busca da quebra de barreiras.  

Trabalhar docência e gestão aliadas às famílias ao longo desse período de fechamento das escolas, a partir da noção de diferença e não num estado imaginário, como se fosse possível manter o que entendíamos como normalidade da vida, foi fundamental para que mantivéssemos nossa capacidade de “inteligir o mundo”, como diria Paulo Freire. Desta forma, nosso foco deveria estar no desenho de rotinas para que a vontade e a curiosidade de aprender não sucumbissem à distância imposta pelo isolamento físico e o fechamento temporário das escolas, cujo objetivo principal era manter viva a relação com o saber – a vontade de saber e de ensinar, sem barreiras! 

Estamos no segundo ano de aprendizado sobre as melhores formas de ensinar nesse novo contexto. Barreiras podem ter sido removidas no ambiente virtual, outras, entretanto, foram evidenciadas. O que a definição de pessoa com deficiência presente em nossa Constituição nos ensina é que o processo de inclusão não está nos impedimentos que uma ou um estudante possa ter, e sim como sua relação com o mundo se estabelece. A deficiência surge não dos impedimentos, que passam a ser compreendidos como características humanas, e sim da interação entre impedimentos e barreiras.  

A boa notícia é que as barreiras são frutos das relações humanas. Sendo assim, nossas ações podem e devem ter como foco sua eliminação. E foi esse o exercício que nós, como agentes dentro do sistema educacional, tivemos que fazer com todas, todos e cada estudante, sem e com deficiência, durante a pandemia. Estar nesse movimento só é possível quando o foco está na relação. Essa necessidade de interação remota provocou que atuássemos a partir do coletivo para lidar com as particularidades de cada estudante. As barreiras eram as mesmas, vivenciadas, porém, de maneiras diferentes. Perceber cada uma e cada um em janelinhas, dentro de uma tela, ressaltou a importância de olhar coletivamente para aquele conjunto de pessoas. 

Processo colaborativo 

Esse processo também demandou a ampliação do trabalho colaborativo dentro das escolas. Foi preciso pensar em grupo – direção, professores do ensino comum, do atendimento educacional especializado – para identificar as barreiras a serem enfrentadas coletivamente. A pandemia nos exigiu respostas complexas, relacionais. No artigo “Fortalecer vínculos é base para educação inclusiva no contexto da pandemia”, escrito em parceria com Patricia Aparecida David, aprofundamos parte dos temas aqui abordados, mas que pode ser resumido da seguinte maneira: a educação inclusiva é uma ação humana coletiva, que se alimenta das noções sobre acessibilidade, desenho universal em prol da diversificação de nossos repertórios. 

Não se trata aqui de romantizar a pandemia e trazer a ideia de que “vamos sair melhores dessa experiência”. Muito menos de ignorar as desigualdades enfrentadas por estudantes que fazem parte de grupos historicamente excluídos, como é o caso das e dos estudantes com deficiência, e que vivenciaram situações severamente agravadas pela crise sanitária. Considerar inaceitável a ampliação das desigualdades educacionais é o princípio básico da inclusão educacional. Lidar com as diferenças humanas como características e ir em busca da quebra de barreiras faz parte desse movimento mais amplo. Para alinhar mundialmente esse movimento e colocá-lo como meta global, os países membros das Nações Unidas definiram 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a serem alcançados até 2030. O ODS 4 refere-se à nossa tarefa de construir uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, para que meninas e meninos, com e sem deficiência, de quaisquer raças ou etnias, tenham seu direito à educação garantido.  

Talvez seja essa a lição que a pandemia tenha nos ensinado, e que precisamos levar adiante: a vulnerabilidade e a inclusão são condições sociais que devem ser compreendidas coletivamente, ainda que seus efeitos sejam percebidos em cada pessoa. A inclusão é uma necessidade humana. Não deixar ninguém para trás significa apostar continuamente na ampliação de nossa capacidade de nos tornarmos mais humanos. Parece óbvio, mas pelo fato de que na pandemia muitas e muitos de nós vivenciamos esse lugar, a inclusão e o enfrentamento das desigualdades educacionais se mostrou tarefa urgente e inadiável! O movimento coletivo pode instigar nossa humanidade a ampliar as possibilidades, fazendo com que a participação em igualdade de condições seja realidade para todas as pessoas, sem exceção! Nas palavras de Paulo Freire, em comemoração ao seu centenário: 

“Reconhecer que o sistema atual não inclui a todos, não basta. É necessário precisamente por causa deste reconhecimento lutar contra ele e não assumir a posição fatalista forjada pelo próprio sistema e de acordo com a qual “nada há que se fazer, a realidade é assim mesmo”. (…) O que não é possível é estar no mundo, com o mundo e com os outros, indiferentes a uma certa compreensão de por que fazemos o que fazemos, de a favor de que e de quem fazemos, de contra que e contra quem fazemos o que fazemos.” (Pedagogia da indignação, 2000, p. 125) 

*Liliane Garcez é consultora em políticas públicas com foco em educação inclusiva. 

Conheça a autora

Liliane Garcez é mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; psicóloga pelo Instituto de Psicologia da mesma universidade; e administradora pública pela Escola de Administração da Fundação Getulio Vargas. 

Atualmente, é consultora especialista na elaboração de relatório sobre o monitoramento do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 4 no Brasil. Fundou ainda o coletivxs, grupo que se dedica a estudar, planejar e executar ações de inclusão educacional e social. 

Trabalhou na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação, e na Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Presidência da República. Em São Paulo, coordenou a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida. Já no terceiro setor, coordenou o setor educacional da Apae, de São Paulo, e foi gerente de programas do Instituto Rodrigo Mendes. 

Edição 9 – Inclusão de pessoas com deficiência

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