Menino não chora. Essa é uma ideia tão socialmente arraigada que nem mesmo se precisa ouvir a frase para viver uma masculinidade marcada por ela. E isso tem consequências tanto para a sociedade em geral, reforçando o machismo e a desigualdade de gênero, quanto para meninos e homens.
Foi para discutir questões relacionadas à masculinidade que se criou o projeto “Repensando a Masculinidade”, uma parceria entre a Fundação FEAC e a Associação Beneficente Direito de Ser, de Campinas, que desenvolve programas socioeducativos para pessoas em situação de risco e em vulnerabilidade social.
A iniciativa oferece aulas de jiu-jitsu e de culinária para crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos atendidos pela Direito de Ser, para provocar reflexões sobre papéis sociais tradicionalmente atribuídos a meninos e meninas, promovendo a igualdade de gênero.
O projeto, que começou em abril de 2020, busca discutir com meninos e meninas questões ligadas à masculinidade e às expectativas, muitas vezes negativas, da sociedade em relação aos garotos. A luta foi uma das portas de entrada para essa discussão.
“O jiu-jitsu exige muita disciplina. O treino mostra também que o mais importante não é força, e sim a técnica. Meninos e meninas treinam juntos, e muitas delas se destacam tanto quanto eles”, explica Renata Cristina Mendonça, coordenadora de projetos sociais da associação.
Já as aulas de culinária servem para trazer os meninos para atividades atribuídas, na maioria das vezes, às mulheres, como cozinhar, lavar a louça e arrumar a cozinha.
Masculinidade e performance
O principal foco do projeto é trabalhar a masculinidade e discutir comportamentos socialmente esperados de meninos. Com isso, a intenção é prevenir atitudes que reforçam a desigualdade e a violência de gênero.
“Existe um padrão de masculinidade tido com ideal, segundo o qual meninos não podem chorar ou expressar sentimentos, e acabam reproduzindo comportamentos agressivos. Em regiões onde a violência é presente, essa é uma performance de masculinidade negativa e que causa sofrimento inclusive aos próprios meninos”, afirma Dione Barbieri, analista do Programa Enfrentamento a Violências, da FEAC.
“O machismo transforma diferenças em desigualdades e cria essa hierarquia”, explica Luciano Ramos, consultor do Instituto Promundo, organização que promove a igualdade de gênero e a prevenção de violências com o engajamento de homens e mulheres em discussões sobre masculinidade.
As discussões sobre desigualdade de gênero começaram nos anos 1960. Mas a masculinidade, aponta Luciano, só entra na discussão de gênero na década de 1990. E não só para falar sobre ela como raiz de desigualdades e violências de gênero, mas também como questão constitutiva do que é ser homem.
“Ninguém quer agir de maneira diferente do esperado e ter sua masculinidade questionada, sendo excluído do grupo social. Para a criança, isso é violento, e muitas vezes os meninos performam uma masculinidade violenta para serem aceitos”, diz Luciano.
Ele destaca ainda a importância de trazer essas discussões para crianças e jovens. “Trata-se de uma abordagem preventiva. Se não fizer isso, vamos agir sempre só depois de a violência ocorrer, vamos olhar para o homem só depois que ele for violento, mas dá para fazer isso antes.”
Percepção do outro
A abordagem sobre a masculinidade e questões de gênero ocorre de maneiras diferentes de acordo com a faixa etária. Com as crianças, adota-se estratégias mais lúdicas. Nas aulas de culinária, por exemplo, os meninos fazem tarefas que não realizam habitualmente em casa, como lavar e guardar a louça. “A conversa sobre a distribuição das atividades domésticas acontece, assim, de maneira natural e muito sutilmente com os pré-adolescentes”, afirma Dione, da FEAC.
Com os mais velhos, abrem-se portas para puxar mais diretamente certos assuntos. “Se a luta marcial é também sobre a contenção da força, dá para trazer outras questões, como violência no trânsito. Na culinária, pode-se falar da distribuição de funções domésticas”, continua Dione.
Em setembro, o Repensando a Masculinidade começou sua segunda fase, que vai durar um ano. A novidade é um conjunto de atividades, a “Conhecendo eu”, que se soma ao jiu-jitsu e à culinária. O objetivo é que os participantes consigam olhar para si e para o outro, como uma forma de se autoconhecer e de respeitar as diferenças.
Uma das maneiras de fazer isso, explica Renata, da Direito de Ser, é pedir que os participantes se desenhem e desenhem um colega, ressaltando assim como eles se representam e como representam o outro.
Fato é que a primeira fase, que se encerrou no final de maio, já teve resultados, segundo Renata. “O comportamento dos participantes melhorou bastante, há muito mais diálogo agora entre eles”, avalia.