As aulas presenciais na rede municipal de ensino de Campinas foram suspensas em 23 de março de 2020 e ainda não voltaram. Os alunos da educação infantil estão há mais de um ano sem pisar numa escola. Para as 6.600 crianças que frequentam 33 unidades escolares da cidade, a boa notícia é que as equipes destas escolas foram contempladas com uma formação que resultará em melhoria da qualidade da oferta no atendimento às crianças. No total, 438 colaboradores dessas unidades estão passando, em 2021, pela formação para profissionais da educação infantil do projeto Novo Olhar, coordenada pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp em parceria com a Fundação FEAC.

“A iniciativa é voltada para profissionais que atuam em OSC de Educação Infantil situadas em regiões de vulnerabilidade do município e que já são nossos parceiros no PIF. É uma grande oportunidade para as equipes escolares, pois se trata de um percurso formativo de qualidade, com a chancela do Nepp/Unicamp”, diz Teresinha Klain, pedagoga e analista de projetos do Programa Primeira Infância em Foco (PIF), da FEAC.

O percurso formativo Novo Olhar foi desenvolvido pelo Programa de Estudos em Políticas Públicas para Educação Infantil – Peppei. O processo envolveu um período de escuta dos diretores, coordenadores pedagógicos e professores, para que pudessem apontar exatamente quais temas gostariam de aprofundar, a partir do contexto real da escola.

O uso dessa metodologia de construção se deve ao fato de os trabalhos e estudos desenvolvidos pelo Peppei fundamentam-se na Prática Democrática, que constitui uma forma de governança participativa

O resultado é um percurso abrangente, com dois módulos iniciais obrigatórios e vários outros eletivos. “Abrimos diferentes temas para criar possibilidades de aprofundamento. Vamos ter abordagens temáticas mais práticas, como a questão da pesquisa como ferramenta para educação das crianças e o papel dos professores como pesquisadores. Também falaremos sobre a importância de preparar o espaço físico da escola para receber os alunos”, diz Roberta Rocha Borges, coordenadora técnica da formação para educadores, professora de pós-graduação na Faculdade de Educação da Unicamp e pesquisadora do Nepp.

A pesquisadora reforça que “trata-se, portanto, de um processo de formação permanente, pois se parte do pressuposto de que mudanças e melhorias nascem da análise sistemática dos desafios encontrados nas diversas realidades e são resultantes do envolvimento dos diversos profissionais das instituições. A formação permanente de educadores caracteriza-se como prática social e as escolas são comunidades em constante aprendizagem, isto é, espaços democráticos, nos quais os educadores se apoiam e se estimulam mutuamente no enfrentamento dos desafios cotidianos”.

Criança pesquisadora

Um dos pontos fundamentais da formação para educadores é dar aos profissionais as ferramentas para trabalharem com uma dinâmica educacional que mudou muito nos últimos tempos. Se antes as crianças eram tidas como meras receptoras de conteúdo, os avanços científicos mais recentes mostram que elas são também produtoras de conhecimento, e que isso deve ser estimulado tanto pelas equipes quanto pelo ambiente educacional.

“Hoje se sabe que as crianças aprendem pela experiência, ou seja, são curiosas, procuram incessantemente a razão de todas as coisas, querem mostrar que conhecem as coisas e sabem como fazê-las, e que têm toda forma e potencial de questionar e de se impressionar. A criança está sempre aberta às relações com os outros e com o mundo e é capaz de construir o próprio conhecimento e a si”, diz Roberta.

“Até um ano de idade, as crianças têm uma inteligência prática. A partir dos dois anos, surge a capacidade simbólica, e é importante uma didática que proponha a elas coisas interessantes. A brincadeira é fundamental”, continua Roberta.

O mero ato de crianças brincarem com folhas de árvores, por exemplo, pode ser desdobrado em uma série de atividades. A partir disso, é possível trabalhar a possibilidade da classificação do material pela cor ou textura, ou estimular uma observação mais atenta para a estrutura das folhas e discutir com as crianças para o que elas servem. Isso tudo reforça o brincar como um dos direitos de aprendizagem, amplamente valorizados nas escolas da infância.

Trabalhar dessa forma inspira o educador atento, que passa a ter um olhar apurado para a criança. “A formação está provocando uma mudança em mim. Eu olhava a criança como um todo, mas nunca pensei em como detalhes são tão importantes, como faz diferença olhar as minúcias do que ela faz”, relata a professora Viviane Teixeira Macedo, que está participando do percurso formativo do Novo Olhar, e atua no Centro Educacional Irmã Maria Angela, no bairro Vila Georgina.

Viviane conta, por exemplo, sobre uma de suas turmas que ficou conhecida como a dos super-heróis: “Eles estavam brincando um dia com blocos de montar, criando personagens. Eu percebi isso e iniciei um projeto com eles sobre o tema”.

“Ao realizar um projeto com a turma, a professora promove a escuta, considera os centros de interesse das crianças, incentiva experiências lúdicas, possibilita uma série de aprendizagens sobre a linguagem simbólica dos heróis, seus trajes, seus poderes e gestos próprios, o que amplia em muito o repertório de saberes das crianças e suas múltiplas linguagens”, completa Teresinha, da FEAC.

Efeitos da pandemia

É inevitável que a suspensão do ensino presencial cause profundos impactos nas crianças. Agora, começam a surgir as evidências do tamanho do problema.

Um levantamento feito em parceria entre a UFRJ e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal ouviu 2.070 professores e familiares de alunos matriculados em 77 escolas públicas, privadas e conveniadas de duas cidades – uma no Nordeste e outra no Sudeste. Dentre os achados, 78% dos professores consideram que as crianças da pré-escola (4 e 5 anos) tiveram impacto negativo no desenvolvimento da expressão oral, corporal, no relacionamento interpessoal e até na nutrição das crianças durante o isolamento.

“Na educação infantil, as brincadeiras e interações são elementos centrais do aprendizado e desenvolvimento. É inegável que o ensino remoto traz muitos desafios quando pensamos nos tipos de atividades que são ideais para essa faixa etária por exemplo, jogos/brincadeiras que envolvam interação entre pares”, explica o doutor em educação Tiago Bartholo, autor do estudo junto com Mariane Koslinski, ambos da UFRJ.

Os pesquisadores ressaltam que o período sem aulas presenciais pode aprofundar a desigualdade, ainda mais diante das “evidências já produzidas por estudos que indicam que a frequência à pré-escola, além de contribuir para o desenvolvimento das crianças em diversas dimensões, está associada a trajetórias educacionais mais longas”.

Dentre as sugestões do estudo para se tentar mitigar os efeitos de longo prazo do período sem aulas presenciais estão fazer diagnóstico sobre o desenvolvimento das crianças, a disponibilidade de espaços ao ar livre para realização de atividades e pensar em estratégias de orientação para os pais com brincadeiras e jogos para enriquecer o ambiente de aprendizagem em casa.

De várias formas, o percurso formativo Novo Olhar reflete sobre todos esses temas apontados como relevantes pelos especialistas. “Nós trabalhamos com os profissionais a orientação para que as famílias consigam apoiar as crianças usando o ambiente de casa como espaço educador, criando, por exemplo, um cantinho do faz-de-conta, com roupas velhas ou as envolvendo em atividades gastronômicas, como a culinária em família”, diz Roberta, do Nepp.

Já Vera Ligia Bellinazzi, diretora do Centro Educacional Coração de Maria e uma das participantes da formação, relata que “a pandemia tem provocado reflexões sobre a educação infantil e sua importância nas infâncias. O ambiente educativo precisa ser constantemente revisto, e participar da formação nos possibilitou muitos olhares e sugestões. A escola ficou fechada, mas continuamos buscando mudanças e qualificando os espaços para que, quando as crianças voltarem, possamos oferecer a segurança necessária e um ambiente educativo cuidadoso e colorido.”

Ela afirma ainda que ter a FEAC como parceira neste momento, em que precisamos nos reinventar em home office, foi essencial, garantiu momentos de formação para toda a equipe. A escola voltara às aulas presenciais trazendo um novo olhar para as crianças e para educação infantil”.

A formação para educadores vem consolidando cada vez mais a relevância da educação infantil como um processo histórico de conquista dos direitos da criança ao seu desenvolvimento pleno. A escola da infância se torna potente, pois, além de cuidar, nutrir e proteger, também promove a interação da criança com os seus pares; a construção da confiança e dos vínculos com os amigos e educadores; a liberdade da criança em explorar os espaços da escola e se sentir segura naquele ambiente, fortalecendo seus laços de pertencimento.

“Tão logo o distanciamento não seja mais um impeditivo, veremos nossas crianças nos espaços escolares, exercendo seu direito à um cotidiano rico em oportunidades de desenvolvimento, com equidade e respeito ao ritmo de aprendizagem de cada um, em sua singularidade”, finaliza Teresinha.

Por Frederico Kling