(Por Ingrid Vogl)

Comer para aprender e se desenvolver. Esta é a proposta que creches adotam na hora da refeição dos pequenos. Muito mais do que o valor nutricional, a hora da refeição para crianças de 4 meses a 1 ano de idade está relacionada ao desenvolvimento de autonomia e o ambiente do refeitório é um local de aprendizado e onde acontece o estreitamento de vínculos afetivos.

Na Unidade Educacional Spes – Serviço Social da Paroquia São Paulo Apostolo, que fica no Jardim São Marcos em Campinas/SP, a equipe pedagógica utiliza mesas e cadeiras especialmente desenvolvidas para a faixa etária de crianças de até 1 ano desde julho de 2016, por orientação de Leila Oliveira Costa, pedagoga, mestre em educação e especialista em educação infantil, que promoveu formações na entidade parceira da FEAC por meio do programa Primeira Infância em Foco, ligado ao Departamento de Educação da Fundação.

“Um dos objetivos das formações da equipe pedagógica com a Leila era a melhoria da qualidade na hora alimentação para que a criança pudesse se desenvolver na íntegra, indo além da sala de aula. Antes de adotarmos o novo mobiliário para a refeição dos pequenos, tínhamos mesas convencionais, que eram compridas, e as crianças sentavam em cadeiras de plástico que não estavam adequadas ao seu tamanho e eram desconfortáveis para elas. Além disso, todo o manejo da comida era feito pelas profissionais, as crianças só recebiam o alimento”, explicou Michele Soares Salomão, orientadora pedagógica do Spes. A adequação do mobiliário para as refeições das crianças faz parte da abordagem pickleriana*, que entre outros aspectos, defende que o desenvolvimento das competências da criança deve seguir livremente.

A partir do novo olhar que as educadoras passaram a ter sobre a questão da alimentação dos pequenos, foram adquiridas mesas e cadeiras em madeira ergonometricamente pensadas e planejadas, respeitando a curvatura corporal das crianças. “A ideia da cadeira e da mesa é que a criança fique com o pé apoiado no chão. Assim, ela consegue desenvolver equilíbrio para segurar a colher e se alimentar com excelência, com mais precisão, porque todo o equilíbrio dela está na segurança que tem de ter a planta do pé no chão”, explicou Michele.

O equilíbrio físico da criança é diretamente relacionado ao desenvolvimento psíquico, como defendia Henry Wallon**, médico, psicólogo e filósofo francês.  “Com os pés apoiados, a criança conecta o equilíbrio do corpo e assim se sente segura e competente, o que está relacionado com a inteligência e o prazer em conseguir desenvolver os movimentos e se apropriar do espaço físico onde está inserida”, explicou Leila Costa.

As Unidades Educacionais parceiras da FEAC são pioneiras entre as instituições públicas de Campinas no uso desse tipo de mobiliário. Além do Spes, a Casa da Criança Meimei, Associação Amigos da Criança (AMIC) Monte Cristo e o Centro de Formação Semente da Vida também trabalham com móveis planejados para a alimentação das crianças. Em breve a AMIC Village também adotará o mobiliário.

Investimento

Na Spes, 114 crianças de 4 meses a 5 anos e 11 meses são atendidas em período integral. Por isso, alguns dos principais momentos de interação vividos na escola são os das quatro refeições diárias oferecidas: café da manhã; almoço; lanche da tarde e janta.

O investimento da creche na compra de mobiliário adequado – por meio do Primeira Infância em Foco- visa o pleno desenvolvimento autônomo da turma do berçário. “A construção do vínculo entre criança e educadora se estabelece por meio de cuidados diários, e um deles é a alimentação. Sendo assim, criar um ambiente de aprendizagem durante esse momento é necessário para que os pequenos possam desenvolver suas potencialidades, se socializar e conquistar autonomia”, analisou Adriana Silva, assessora técnica do Departamento de Educação da Fundação FEAC.

Adriana explicou que o desenvolvimento motor na criança é acompanhado de perto pelo desenvolvimento do seu equilíbrio, que lhe permite a autonomia para se alimentar e lhe dá uma noção real do espaço que ocupa no ambiente. “Para a criança, o movimento representa muito mais que um prazer funcional. E poder ter um desenvolvimento motor pleno e saudável permite que ela adquira conhecimento sobre si e sobre seu corpo, sobre tudo o que é capaz de fazer e conquistar, se tornando protagonista da ação. Neste caso, o sentimento de competência do pequeno não é bloqueado pela figura de um adulto”, avaliou.

Mudança de hábito

A adaptação com o novo mobiliário não foi fácil para as educadoras. A dificuldade foi quebrar o hábito de querer fazer pela criança. “Antes a profissional ficava em pé ou na ponta da mesa alimentando cinco ou seis de uma vez só, em uma ação mecânica. As crianças não conseguiam visualizar a educadora de forma apropriada, na altura de seus olhos. Com essa nova proposta, a educadora fica em um banquinho na lateral da mesa, onde sentam-se quatro crianças, assim, ela tem a visão dos pequenos pelos quais é responsável na hora da refeição”, explicou Michele.

Desta forma, segundo a orientadora pedagógica, as crianças conseguiram entender a logística do processo onde estão inseridas. Quando as crianças sentaram na cadeirinha- e isto acontece no tempo de cada uma delas – imediatamente já conseguiram se ajeitar e levantar sozinhas, sem auxílio do adulto, demonstrando autonomia e independência.

E isto levou a outros progressos. Os pequenos começaram a segurar o prato, a colher, demonstravam estar satisfeitos com a refeição afastando o prato, e até escolher o lugar preferido na mesa. A sala da turma do berçário fica estrategicamente próxima das mesas e cadeiras no refeitório, e chegar e sair do local de refeição sozinha, sem serem levadas pelas educadoras e diminuindo o tempo de espera, também foi um progresso que as crianças conquistaram.

Mas antes dos pequenos começarem a usar o mobiliário para comer, é feita toda uma adaptação, começando pela colocação das cadeiras e mesas dentro da sala de aula, para que os pequenos possam se familiarizar. Em cerca de três dias, as crianças já estão usando o mobiliário. “Além da familiarização em sala de aula, existe uma trajetória para que a criança sente sozinha na cadeira e consiga manusear a colher, e para as que ainda não conseguem sentar sozinhas, elas primeiramente passam pelo colo da educadora”, disse Michele.

“Perceber que as crianças passam a ter domínio sobre o ato de comer e de ir e vir sem o auxílio do adulto é fantástico. O que adquiriram aqui é a autonomia do movimento, de poder fazer por eles mesmos. Como um dos resultados, os pequenos começaram a perceber que o universo do refeitório, antes tão barulhento, ficou mais tranquilo, interessante e significativo para eles, porque realmente passaram a fazer parte daquele ambiente de refeição, comendo melhor, com menos choro e também interagindo mais com a comida: pegando, cheirando e inclusive desenvolvendo as preferências alimentares”, frisou Michele.

Assim, as crianças também passaram a perceber o refeitório como um ambiente familiar e a entender a cultura em que ela está inserida: de comer em mesas, com colher, com companhias, desenvolvendo também uma convivência típica de nossa cultura.

Laços afetivos

Outra transformação significativa percebida pelas educadoras do Spes está relacionada com a socialização. Enquanto as profissionais responsáveis por cada uma das mesas com quatro crianças ajeitam o prato de comida de cada um e entoam cantigas infantis que incentivam à alimentação, os pequenos se mostram muito à vontade com o alimento e a integração com os amiguinhos é em clima de cumplicidade e respeito.

As mudanças na hora da refeição impactam também na evolução educacional. Além de aprimorarem noções motoras, de distância e a autonomia, os pequenos também têm ganhos secundários, como o desenvolvimento na hora de brincar. “A criança se arrisca e tenta mais vezes. Com os colegas, ela é mais centrada na hora de tocar o amigo, porque tem ideia do cuidado com o próximo”, explicou Michele.

“A evolução das crianças é excepcional. Na hora de comer, elas estão adequadas e livre para experimentar e assim é possível perceber rapidamente o desenvolvimento. Elas estão crescendo com mais afetividade, interatividade entre elas e com as educadoras também. Hoje a hora da refeição é mais prazerosa e as crianças vão crescendo mais felizes e carinhosas”, afirmou Geovana Barbosa, professora há 18 anos na entidade.

O contato com o mobiliário no refeitório também teve efeitos em casa. Segundo a orientadora pedagógica da Spes, vários pais relataram que após duas ou três semanas de uso das mesas e cadeiras especiais na escola, os filhos já não aceitavam mais a comida dada pelos familiares e preferiam comer sozinhas. “Os pais perceberam a mudança de hábito da criança em casa, aceitaram e aderiram ao novo olhar para a hora da alimentação, porque sentiram o progresso dos filhos e agora procuram dar continuidade ao trabalho que estamos desenvolvendo aqui na creche”, justificou Michele. “É como tirar uma venda dos olhos e a partir disso, o adulto começar a enxergar a criança como um ser capaz de fazer. É só darmos espaço a ela, “, concluiu.

* Sobre a Abordagem Pikler

Com o objetivo de acolher crianças que tinham sido separadas de seus pais durante a Segunda Guerra Mundial, a médica húngara Emmi Pikler (1902-1984) fundou um abrigo, na cidade de Budapeste, em 1946. Mais de 4 mil meninos e meninas passaram pelo Instituto Emmi Pikler-Lóczy e, ao acompanhar seus desenvolvimentos, constatou-se algo interessante: nenhuma delas detinha sinais de hospitalismo, como: apatia, falta de interesse pelo mundo exterior, atrasos no desenvolvimento afetivo, intelectual e/ou motor – que são naturais em casos de internamento prolongado em hospitais ou abrigos onde não é construído um vínculo afetivo. Ao contrário, as crianças do Instituto chamavam a atenção pelo desembaraço, segurança, alegria, confiança no adulto e bom desenvolvimento emocional.

Um ambiente que permita o desenvolvimento pleno das capacidades motoras e uma relação intersubjetiva estável e afetivamente rica entre o educador e a criança, são a justificativa para o resultado positivo visto anteriormente. Estes são os pilares que fundamentam a Abordagem Pikler e alia sabedoria e simplicidade.

Um dos mais importantes princípios da abordagem desenvolvida por Emmi Pikler é o de que o adulto deve estabelecer uma relação de confiança e interação com o bebê durante os principais cuidados (banho, troca de fraldas, alimentação). Além disso, o espaço é organizado para que o bebê possa se movimentar com mais liberdade desde muito cedo, o que proporciona maior autonomia (a criança conquista cada posição por si mesma na medida em que é capaz de manter sua postura) e melhor desenvolvimento motor. (Fontes: Rede Nacional da Primeira Infância; Anna Tardos).

**  Saiba mais sobre Henry Wallon