(Por Ariany Ferraz)

“A violência sexual pode estar em qualquer lugar”, disse a aluna Juliana*, 14 anos. Ela e mais 40 alunos participaram da oficina de prevenção e conscientização contra o Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes promovida pelo CPTI (Centro Promocional Tia Ileide) na EMEF Doutor João Alves dos Santos.

Participando ativamente do debate, Juliana estava mobilizada em alertar os colegas sobre a importância do tema e do posicionamento de todos. “Eu achei legal essa dinâmica! Todo mundo aqui tem muitas opiniões diferentes, mas me preocupa os meninos, principalmente, que vão virar homens daqui a pouco e ninguém quer que eles abusem de meninas, por exemplo”, comentou.

As duas turmas com jovens na faixa dos 15 anos discutiram sobre consciência e atitudes em situações vulneráveis que envolvem violência sexual. Com uma metodologia baseada em rodas de conversa, Vanessa de Araújo, educadora social do CPTI, explicou que muitas vezes as pessoas vivenciam um caso de assédio ou abuso sexual, por exemplo, mas se não há um conhecimento prévio e uma conscientização acaba se naturalizando a situação de violência. “Falar sobre o assunto é também uma forma de combater! Nós trouxemos os casos para eles discutirem a partir daquilo que eles têm de conhecimento. É compartilhar informação para que eles possam se proteger e se fortalecer para buscar ajuda em um caso de necessidade”, observou.

A atividade contou com o apoio do Programa Enfrentamento a Violências da Fundação FEAC, que trabalha a temática com objetivo de alertar e mobilizar a sociedade para o combate das violações de direitos. “É essencial promover ações preventivas que propiciem o diálogo sobre a violência sexual, compreendendo-a como uma violação multifatorial, pois trará a ampliação dos conhecimentos e a conscientização para o seu enfrentamento, contribuindo ainda para o rompimento do ciclo dessa violência”, avaliou Natália Valente, técnica de referência do Programa.

“Até por conta da região, de situações que os nossos alunos vivenciam, é importante trazer instrumentos para se esclarecem, que fiquem mais bem informados, conhecendo os direitos que eles têm, se fortalecendo e podendo pedir ajuda. Foi importante o contato concreto a partir de uma oficina e estamos vislumbrando a possibilidade de uma continuidade a esse trabalho”, afirmou José Luis Pastre, orientador pedagógico na escola.

Uma triste realidade

Em Campinas, em 2017, a violência sexual vitimou 274 crianças e adolescentes, 65% de 0 a 11 anos e 35% de 12 a 17 anos, de acordo com as notificações da Secretaria Municipal de Saúde. Outros dados do Programa Iluminar1 indicam que 70% ocorrem de 0 a 19, sendo 151 de 10 a 19 anos. Em relação à exploração sexual no Brasil, apenas 7 em cada 100 casos são denunciados. Dado que ilustra um problema ainda maior, a resistência e medo da denúncia, por falta de informação, naturalização da violência, preconceito, medo, entre outros fatores.

“A escola aqui cuida da gente, mas a gente sabe de outras escolas que acontecem casos assim. Amigas de outras escolas que me contam sobre olhares estranhos, sabe, ou de algo errado que aconteceu”, revelou a jovem Juliana.

O que é abuso sexual?

Para instigar reflexões, a atividade socioeducativa apresentou casos fictícios para o debate, em que  meninos e meninas puderam interpretar situações de violência sexual, avaliar questões legais, analisar comportamentos abusivos, limites nas relações, como proceder em situações de risco e também debateram sobre relações sexuais e uso de bebidas.

“Para falar de violências sexuais é importante ações de prevenção. A gente propõe atividades dinâmicas ou até mesmo lúdicas, que provoquem no grupo a reflexão do que é ou não abuso e entender conceitos, por meio de uma metodologia participativa. Depois dessas conversas eles multiplicam esses conhecimentos e até geram novas propostas”, explicou Caroline Cardoso, coordenadora técnica no CPTI.

A naturalização de muitos comportamentos foi posta em jogo na roda de conversa. Uma das turmas relatou casos escolares e outros que fazem parte da realidade de muitas meninas da região, como a ida à festas intituladas “chacrinhas’’, onde ilegalmente crianças e adolescentes frequentam, ocorrendo uso de substâncias psicoativas, pedofilia, entre outras inúmeras violações. Por isso, os jovens destacaram a importância de falar sobre sexualidade, de receberem orientações e se informarem melhor para prevenir essas situações de risco.

Como provar o abuso? Com quem contar? Os próprios jovens trouxeram para o debate casos reais que se tornaram públicos e criticaram a ausência do rigor da lei na punição. Mas foi sobre questões de gênero que o assunto rendeu discussões acaloradas. Foram debatidas as relações de poder da sociedade e o machismo foi pauta como um grande fator que influencia e provoca casos de violência sexual, principalmente contra meninas. Como revelam os números, 80% das crianças e adolescentes vítimas são do sexo feminino em Campinas.

A educadora Vanessa cita o exemplo do namoro, em que se torna normal a menina ceder às vontades do namorado, como mandar nudes, por exemplo. Caso que apresenta um número recorrente de ocorrências entre jovens. Os próprios alunos fizeram referências a casos próximos de suas realidades em que ex-namorados ressentidos espalham fotos de nudez de meninas.

“A sociedade diz que o menino tem que ser o pegador”, disse uma estudante. “As meninas são sempre julgadas”, exclamou outra. Entre tabus e valores deturpados, as meninas falaram sobre o assédio diário vivido, sobre consentimento e os incômodos com as atitudes e valores ainda considerados naturais. “É viver com a sensação de medo”, apontou uma aluna.

Em relação ao assédio no Brasil, 40% da mulheres foram vítimas em 2017 e as mais atingidas são as jovens, 70% das mulheres de 16 a 24 anos, de acordo com pesquisa2. Sancionada recentemente, a lei de importunação sexual (Lei 13.718) foi mencionada no contexto, indicando a novidade na punição do assédio na rua e criminalizando também a divulgação de cenas de sexo ou nudez, com aumento das penas.

“O abuso sexual não escolhe idade e acontece tanto com meninas quanto com meninos”, enfatizou um dos garotos. Vanessa observou que os meninos também são vítimas e que a sociedade minimiza a violência nesse casos. “Tem o papel de gênero sobre o menino, de que ele tem que ser forte. E quando um menino sofre violência sexual é muito difícil ele falar isso”. Ela compartilhou dados de uma pesquisa sobre o tema, em que os meninos vitimados antes dos 16 anos conseguiram falar sobre o ocorrido somente depois dos 36 anos.

“Foram dois grupos bem preparados! Eles estavam prontos para discutir e isso foi ótimo. A relação do abuso e da sexualidade é um assunto que eles têm conhecimento e querem conversar sobre isso. A gente tem visto ultimamente muitos casos de abuso e exploração sexual e isso devia ser debatido em todas as escolas. Eles acabam relatando vivências. Então é um assunto que precisa ser falado para que não fique guardado entre eles e se crie um jeito de solucionar”, explicou o mediador das atividades, Richard de Jesus, que além de atuar no CPTI é integrante do projeto Jovens Mobilizadores/as pela Saúde Sexual e Reprodutiva que tem a Reprolatina como parceira executora e atua na REAJU (Rede Articula Juventude), iniciativas  também apoiadas pela FEAC. Richard acredita que as conversas acabam refletindo em alguns comportamentos dos jovens, que já percebem algumas atitudes incorretas e ficam mais conscientizados.

Programa Enfrentamento a Violências

É uma iniciativa da Fundação FEAC que investe na mitigação dos impactos das violências e no enfrentamento para romper os ciclos que as perpetuam com objetivo de promover o bem-estar e a cultura de respeito, empatia, tolerância e paz.

* nome fictício.

1  Casos de violência sexual atendidos pelo Programa Iluminar, do Departamento de Saúde da Secretaria de Saúde de Campinas, que faz parte da rede de cuidados às vítimas de violência sexual do município,

2 “A Vitimização de Mulheres no Brasil”/Datafolha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2018 e 2017)