Por Frederico Kling

Onde estão as pessoas com deficiência intelectual do Jardim Santa Lúcia, região de vulnerabilidade social de Campinas? A pergunta surgiu depois de se comparar dados censitários com aqueles de pessoas que registradas em serviços especializados, estabelecimentos educacionais e locais de trabalho. Percebeu-se que muita gente não estava incluída em lugar algum. 

Isso motivou a criação do projeto Território de Todos, realizado pela Fundação FEAC e Fundação Síndrome de Down, em parceria, e que, desde 2018, atendeu 169 pessoas que estavam em isolamento, e fez o processo de inclusão no convívio social. 

A iniciativa faz a busca ativa de pessoas com deficiência intelectual no domicílio para promover sua inclusão na comunidade. A inspiração para o projeto foi o Programa mala de recursos lúdicos, executado pela Adra em Belo Horizonte, que, por meio de atividades lúdicas no domicílio ou na comunidade, busca fortalecer vínculos familiares para prevenir situações de exclusão e de isolamento social. Também se baseou no Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio  para Pessoas com Deficiência e Idosas, do Sistema Único de Assistência Social (Suas). 

Começamos a fazer reuniões com os serviços na rede (escolas, centros de saúde, instituições sociais) para identificar pessoas com deficiência intelectual que não estavam sendo atendidas e irmos atrás delas”, explica Annelise de Souza Denzin, que trabalha na Fundação Síndrome de Down e é coordenadora do Território de Todos. 

Houve momentos, porém, em que foi necessário bater perna para encontrá-las. “Chegamos a ficar dois meses sem receber informações da rede de atendimento. Os profissionais do projeto saíram perguntado aos moradores do bairro Jardim Santa Lúcia, onde o projeto piloto iniciou, se conheciam pessoas com essa ou aquela característica e que viviam por ali. Só assim, encontramos 15 casos”, lembra Regiane Alves Costa Fayan, líder do Programa Mobilização para Autonomia, responsável pelo Território de Todos na FEAC. 

Desde 2018, o projeto já identificou e atendeu em domicílio 169 pessoas com deficiência intelectual que estavam em situação de isolamento. Elas tiveram garantido o encaminhamento para serviços de saúde, de educação, de cultura e de assistência social, entre outros. No momento, o Território de Todos atende 56 pessoas, e estuda outros 10 casos. 

O projeto se expandiu para todo o município de Campinas, sempre com foco em regiões vulneráveis. Essa é, por sinal, uma de suas principais diferenças em relação a outras iniciativas que lidam com pessoas com deficiência. 

Afinal, como aponta a jornalista e fundadora da Escola de Gente, Claudia Werneck, “no Brasil, os movimentos de familiares e de pessoas com deficiência intelectual são geralmente elitistas, não consideram a forte relação entre pobreza e deficiência, sendo que o contrário também é verdadeiro, porque os movimentos que buscam soluções para a pobreza raramente consideram o grande número de pessoas com deficiência que nela vive. 

Cuidados com a família

Áreas de vulnerabilidade sofrem muito com a carência de serviços públicos e de espaços inclusivos. Até por isso, o Território de Todos, ao chegar às casas de pessoas com deficiência intelectual em isolamento, busca sempre entender a situação da família. 

Como ressalta Claudia, “não basta olhar apenas para a pessoa com deficiência intelectual; é preciso atenção também para quem está ao redor dela, como sua família. Às vezes, não é a criança que tem deficiência intelectual, mas sua responsável. As políticas públicas, ainda que raras na atualidade, também tendem a ignorar as necessidades específicas de quem tem deficiência e vive em situação de pobreza”. 

O projeto toma muito cuidado para nunca culpabilizar os familiares pela situação de isolamento. Território de Todos tem assistente socialpsicóloga e uma equipe de educadores sociais preparados para lidar com as situações envolvendo pessoas com deficiência.  

Chegar na família é delicado. Vamos aos poucos, a vinculação é um processo difícil e atividades lúdicas ajudam nisso”, afirma Annelise, coordenadora do programa. Até hoje, nunca houve uma negativa por parte de familiares. 

Em cada caso, é preciso entender o que aconteceu. Qual o motivo da situação de isolamento e o que fazer para reverter essa situação e vincular a pessoa com deficiência intelectual à rede de atendimento?  

Até por isso, o Território de Todos atua de maneira muito customizada. Os profissionais criam planos individuais de atendimento, levando sempre em conta as potencialidades de cada beneficiário.  

Barreiras e inclusão

A coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, Luiza Andrade Corrêa, aponta que a comunicação é uma grande barreira à inclusão: “Poucas instituições e documentos utilizam uma linguagem simples, acessível”. 

Essa é uma realidade que o Território de Todos pôde comprovar. Por exemplo, nos centros de saúde, muitas vezes os profissionais não se esforçam para entender o que a pessoa com deficiência está falando, e ela acaba saindo sem respostas. 

“A ausência de um diagnóstico pode impedir que o indivíduo consiga ter acesso a benefícios ou ao mercado de trabalho, por meio de cota de vagas para pessoas com deficiência”, diz Annelise. 

De fundo, há uma barreira ainda maior: a sociedade simplesmente não aceita que pessoas com deficiência tenham capacidade de tomar decisões autônomas. Historicamente, pessoas com deficiência são desacreditadas, hoje existe um movimento forte pela sua autodeterminação”, avalia Luiza. 

A inserção pelo encaminhamento aos serviços da rede, feita pelo projeto, tem como um dos objetivos justamente provocar os espaços públicos e as pessoas que o frequentam para que percebam que todos somos diferentes e temos direitos. E, como ressalta Luiza, do Instituto Rodrigo Mendes, “inclusão é processo, não há linha de chegada”.