“Uma mulher que é dona do seu próprio dinheiro é dona da sua vida e das suas próprias decisões”, diz Ana Fontes, fundadora e CEO da primeira e maior rede de apoio a mulheres empreendedoras no Brasil, a Rede Mulher Empreendedora (RME), que atualmente conta com mais de 140 mil mulheres cadastradas. O objetivo é apoiar projetos que as empoderem, garantindo que elas conquistem autonomia financeira e sejam justamente donas de suas próprias decisões.

E Ana sabe do que está falando. Hoje com 55 anos, nasceu em Igreja Nova (AL) e se mudou para Diadema, na grande São Paulo, na década de 70, com seus pais e sete irmãos. Mulher, nordestina, de família com poucas condições financeiras. Não foram poucas as barreiras sociais que ela teve de superar para concluir os estudos universitários e ingressar no mundo corporativo, no qual ficou por 17 anos.

Em 2010, fundou a Rede Mulher Empreendedora e, em 2017, fundou o Instituto Mulher Empreendedora, voltado especialmente às mulheres em situação de vulnerabilidade social.

Ana conhece bem as barreiras que a sociedade impõe a quem quer começar a empreender, mas não possui condições financeiras e sociais favoráveis. Por isso, a Fundação FEAC bateu um papo com ela para entender o atual cenário do empreendedorismo no Brasil para essas pessoas. Confira as reflexões, análises e dicas da empreendedora para quem quer começar a empreender ou alavancar seu negócio.

FEAC – Atualmente, qual é o potencial de empreendedorismo que existe em territórios vulneráveis no Brasil? Como a sociedade pode aproveitar esse potencial?

Ana Fontes – Primeiro é importante lembrar que, quando a economia tem problemas – atual cenário do Brasil –, cresce a quantidade de pessoas que buscam empreender. Isso acontece muito mais por necessidade do que por oportunidade. Hoje nós temos quase 15 milhões de desempregados que precisam colocar comida dentro de casa. Então, empreender acaba sendo a única opção. Nos territórios vulneráveis, é muito potente a quantidade de empreendedores que ajudam a resolver problemas locais e até problemas do nosso país. A sociedade pode aproveitar esse potencial oferecendo financiamentos, orientaçõescriando projetos e programas de capacitação para o público em vulnerabilidade social. A sociedade pode enxergar esses territórios não só pela perspectiva da vulnerabilidade, mas também da potência.

FEAC – As pessoas em situação de vulnerabilidade se enxergam e são reconhecidas como empreendedoras? Por que isso é importante?

Ana Fontes – O reconhecimento não é algo simples, especialmente porque nós, como sociedade, associamos os territórios de vulnerabilidade sempre com questões de violência, e não com a potencialidade que realmente possuem. Por isso é muito importante orientar as pessoas a se identificarem como empreendedoras. As pessoas em territórios de vulnerabilidade – e eu fui uma delas – precisam que os outros acreditem nelas, que as reconheçam, que lhes deem apoio não só com curso e capacitação, mas também investindo dinheiro nos seus negócios e comprando dos territórios de vulnerabilidade. Esse reconhecimento ainda não é como deveria, mas na medida em que vamos fortalecendo esses empreendedores, ele tende a aumentar.

FEAC – O empreendedorismo pode ser uma ferramenta para transformações econômicas e sociais? Como isso é possível?

Ana Fontes – Com certeza. Só temos que tomar cuidado para não romantizar o empreendedorismo sem condições, pessoas que querem empreender, mas não têm apoio de políticas públicas para desenvolverem seu pequeno negócio, não têm acesso a financiamentos, não têm acesso a programas de capacitação. Então, o empreendedorismo pode ser uma ferramenta aliada a transformações desde que as pessoas recebam apoio para desenvolverem seus negócios. Na RME, nós já impactamos mais de seis milhões de mulheres, e uma coisa que ouvimos o tempo inteiro é como foi importante para elas terem recebido apoio, capacitação e recursos. O apoio é absolutamente fundamental.  

FEAC – Considerando o cenário, brasileiro, quais as principais barreiras que pessoas em situação de vulnerabilidade encontram para começar a empreender?

Ana Fontes – Em primeiro lugar está o acesso ao recurso financeiro: é mais difícil para pessoas em vulnerabilidade social conseguirem acessar crédito no mercado financeiro. Deveria haver uma política pública de acesso ao crédito. Em segundo lugar, está o acesso à capacitação e inovação: para empreender, precisamos de cursos, programas de aceleração de negócios e mentoria. Em terceiro, eu destaco o acesso ao mercado: o empreendedor criou um produto ou serviço, mas agora precisa de ajuda para vender. Em outros países, já existem políticas públicas que ajudam o público em vulnerabilidade social, por exemplo, comprando produtos e serviços desse público.

FEAC – Onde essas pessoas podem acessar crédito para começarem a empreender? E quais as dicas para quem quer começar um negócio ou potencializá-lo?

Ana Fontes – Nós, da Rede, ajudamos na correalização de duas iniciativas de crédito durante a pandemia: uma delas é o Fundo Dona de Mim, liderado pelo grupo Mulheres do Brasil, que oferece créditos para microempreendedoras individuais. A outra é o Estímulo 2020, que também oferece créditos em condições diferenciadas para empreendedores em situação de vulnerabilidade. [Clique aqui e conheça o Empreende Campinas, fundo de microcrédito da FEAC para empreendedores de territórios vulneráveis.]

FEAC – Como o contexto da pandemia afetou as oportunidades e desafios para empreender?

Ana Fontes – A pandemia afetou fortemente todos os pequenos negócios e mais ainda os negócios das mulheres, porque 60% delas empreendem em áreas de moda, beleza, alimentação e serviços, que foram muito impactadas pela pandemia. A maioria da população não tem o privilégio de fazer home office, então a pandemia afetou a forma como a gente cria os negócios e como a gente sobrevive. Empreender não é fácil em ambiente algum, e ficou muito mais difícil nesse contexto. Agora, estamos trabalhando na recuperação desses negócios e na sua reorganização, para que consigam se reinventar e superar esse momento tão desfavorável.  

FEAC – Para as mulheres, existem barreiras adicionais para empreender?

Ana Fontes – Além das barreiras para qualquer pequeno empreendedor, para as mulheres, adicionalmente, existe maior dificuldade de acesso ao crédito, porque elas têm menos contato com recursos financeiros. Isso acontece pela falta de equilíbrio entre trabalho doméstico, cuidado com filhos e família. A elas ainda são mais atribuídos os cuidados domésticos do que a seus companheiros, e isso acaba tendo um impacto muito forte nos negócios. A participação de mulheres em cursos de inovação e negócios também costuma ser menor. Por essas questões, é muito importante oferecermos esse acesso a mulheres. Nós fazemos isso na rede, mas também acreditamos em políticas públicas para mudar esse cenário. Quando apoiamos especialmente as mulheres, nós temos um impacto social maior. Sabe por quê? Porque quando o negócio dá certo, as mulheres investem no bem-estar da família, no cuidado com os filhos e na educação das crianças, gerando impacto positivo, inclusive, para as próximas gerações. Elas também investem na própria comunidade onde estão, e quando precisam de um serviço, dão preferência para contratar outras mulheres, criando um círculo virtuoso.

FEAC – Como o empreendedorismo e a busca pela independência financeira se conectam ao empoderamento feminino?

Ana Fontes – Eles têm uma conexão muito forte e muito visceral: uma mulher que é dona do seu próprio dinheiro é dona da sua vida e das suas próprias decisões. Nós temos inúmeros programas em que trabalhamos com combate à violência contra mulher com foco em geração de renda, porque quando a mulher tem o dinheiro dela, ela se sente mais forte e confiante e consegue sair desse círculo de violência com menos dificuldade em comparação àquelas que dependem financeiramente do companheiro. São pautas absolutamente conectadas e por isso nosso propósito é ajudar mulheres na busca por geração de renda, seja através do empreendedorismo ou da empregabilidade.

Qual é a história do Rede Mulher Empreendedora?

Em 2009, Ana Fontes foi selecionada para participar do “10.000 mulheres”, programa de capacitação em gestão de negócios da Fundação Getulio Vargas (FGV), com foco no empreendedorismo feminino. Ela criou um blog para compartilhar todo o conhecimento adquirido e ajudar outras mulheres a empreender. Era a semente da Rede Mulher Empreendedora (RME), primeira e maior plataforma brasileira de apoio ao empreendedorismo feminino.  

O blog cresceu rápido, ganhando holofotes de grandes empresas, até que se consolidou como a RME. A Rede já impactou mais de 750 mil pessoas por meio de diversos serviços como capacitações, mentorias, aceleração de negócios e eventos presenciais por todo o Brasil.  

Em 2017, Ana criou o Instituto Mulher Empreendedora, cujos programas são gratuitos e voltados a mulheres em situação de vulnerabilidade social, oferecendo benefícios como acesso à capital semente e auxílio alimentação.

Por Laíza Castanhari