“Durante a pandemia, a favela deu uma lição de equilíbrio emocional. Não teve saque, não teve violência”, diz Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas (Cufa), organização fundada em 1999 na Cidade de Deus, Rio de Janeiro, e hoje presente em comunidades de todas as regiões do Brasil. 

Mas Preto Zezé, um ex-lavador de carros que cresceu na periferia de Fortaleza e se tornou empreendedor social, também diz conhecer a fome e, apesar de seu compromisso com uma agenda positiva para as favelas, que ressalte suas potencialidades, ele faz um alerta: “As pessoas não vão ficar vendo suas crianças passando fome, isso cria dúvida em torno de um pacto social coletivo, pode tudo pegar fogo sem ter tempo de corrigir. Se não tiver como compartilhar as riquezas produzidas, vamos acabar compartilhando as tragédias”. 

Equilibrando otimismo e urgência, Preto Zezé faz uma análise sobre o que aconteceu com as favelas brasileiras durante a pandemia e aponta caminhos de saída para a crise socioeconômica profunda que atinge as populações mais vulneráveis do país. 

Lei abaixo a entrevista que ele concedeu à Fundação FEAC, e que ainda contou com a participação de convidadas especiais. Eliane Trindade, jornalista da Folha de S.Paulo e editora do Prêmio Empreendedor Social, e duas beneficiárias do Tempo de Empreender, projeto da FEAC de incentivo ao empreendedorismo de baixa renda, Cristiane da Silva Domingues e Laleska Caroline de Oliveira, enviaram  questões, enriquecendo ainda mais o debate.  

Fundação FEAC: Como a pandemia afetou as regiões mais vulneráveis do Brasil? 

A gente presenciou o agravamento de uma situação que já estava problemática. A informalidade ficou bem maior com o cenário de crise sanitária. As favelas têm um potencial de R$ 189 bilhões de poder de consumo, mas houve uma liquidação de empregos formais. Quem tinha alguma coisa, estava se virando, mas muitas pessoas foram morar na rua. A gente percebe um outro formato nas moradias de rua, mais parecidas com uma casa de família, não são mais pessoas sozinhas que estão vivendo ali. É um público novo, afetado pela pandemia. 

“As pessoas estão desesperadas, tem gente pedindo internação em UBS para ter três refeições diárias para comer, tem mãe pedindo internação de filho para garantir alimentação dele.”

Preto Zezé


 

FEAC: Como está a questão da fome nas favelas? 

As pessoas estão desesperadas, tem gente pedindo internação em UBS para ter três refeições diárias para comer, tem mãe pedindo internação de filho para garantir a alimentação dele. Temos quase 100 milhões de pessoas com fome. As doações de alimentos reduziram muito desde setembro, tem mais gente ainda passando fome. Durante a pandemia, a favela deu uma lição de equilíbrio emocional. Não teve saque, não teve violência. Mas as pessoas não vão ficar vendo suas crianças passando fome, isso cria dúvida em torno de um pacto social coletivo, pode tudo pegar fogo sem ter tempo de corrigir. Se não tiver como compartilhar as riquezas produzidas, vamos acabar compartilhando as tragédias 

FEAC: E qual o papel que o poder público tem nessa situação? Como você vê, por exemplo, o fim do Bolsa Família e sua substituição pelo Auxílio Brasil? 

A perspectiva é grave em torno de políticas públicas. O Auxílio Brasil mexe com uma política pública que era estruturante. O Bolsa Família ia muito além de apenas distribuir dinheiro. Tinha toda uma série de condicionantes que eram muito importantes, como a frequência escolar e a obrigação de vacinar as crianças. Quando mexe com uma política estruturante como essa, o receio é de que o que entra no lugar não tenha sustentabilidade. Mas as pessoas na favela querem qualquer ajuda, e não tem capacidade de fazer uma avaliação estrutural dessa mudança. A situação é muito difícil, tem que preparar um pacote de políticas emergenciais no curto prazo, políticas de transferência de renda, só assim vai dar para destravar a economia.  

“Hoje, cerca de 30% da economia de negócios nas favelas está sendo feita pela internet. As pessoas vendem bolo, oferecem serviços, dão aulas usando celular. Até por isso, tem que colocar o acesso à internet como um direito fundamental.”

Preto Zezé


 

FEAC: Qual o papel que o empreendedorismo das favelas pode ter para um cenário de recuperação econômica do Brasil? 

Durante a pandemia, distribuímos chips para pessoas que tinham celular, mas não tinham acesso à internet. As mulheres começaram a fazer negócios aproveitando esse acesso. Hoje, cerca de 30% da economia de negócios nas favelas está sendo feita pela internet. As pessoas vendem bolo, oferecem serviços, dão aulas usando celular. Até por isso, tem que colocar o acesso à internet como um direito fundamental. Se o governo tiver uma política de transferência de renda e de oferecimento de crédito para microempreendimentos, a favela se vira. Mas se não conseguir fazer essa distribuição emergencial, vai ser muito difícil recuperar a economia só com o empreendedorismo das favelas. 

Eliane Trindade: Qual o papel dos empreendedores sociais na retomada pós-pandemia, depois da força demostrada por ONG e a sociedade civil organizada na emergência sanitária? 

A pandemia fez surgirem várias soluções inovadoras num período de caos social. A gente precisa mapear essas inovações e empoderar quem já está no território, que é quem conhece o que as pessoas ali precisam. Como criar uma rede de colaboração nas favelas? A Cufa, por exemplo, criou a Favela Holding, uma empresa que trabalha com várias coisas como telefonia, logística de entregas e várias outras frentes que ajudam a fortalecer essas iniciativas de empreendedores sociais do território. 

Cristiane da Silva Domingues: Como empreendedores como eu podem, com o seu negócio, colaborar com o local que vive e com as pessoas a sua volta? 

Na medida em que os pequenos negócios vão criando uma rede que atua coletivamente, eles deixam dinheiro na favela. Os empreendedores são células capazes de reativar o mínimo do mínimo para as coisas funcionarem na favela. Não custa lembrar que foi a favela que manteve funcionando os serviços essenciais durante a pandemia, foram as pessoas daqui que trabalhavam nos mercados, nos transportes, em vários setores da saúde. Foi a massa de pessoas da favela que manteve o país andando durante a pandemia. 

Laleska Caroline de Oliveira: Como o empreendedorismo nas favelas pode ajudar a empoderar mulheres? 

A cadeia econômica inteira da favela é comandada por mulheres. São elas que estão à frente dos serviços, dos mercados, dos salões de beleza, dos negócios de alimentação. Incentivar o empreendedorismo na favela é botar dinheiro na mão das mulheres. A mesma coisa com as transferências de renda. A gente sabe que quando o dinheiro chega nas mãos das mulheres, elas usam localmente, incentivando a economia daquela região. 

“O racismo é uma força muito forte, e a agenda racial é fundamental. Não existe desenvolvimento no Brasil sem combater o racismo. A agenda racial não é específica dos negros. É uma agenda nacional.”

Preto Zezé


 

Fundação FEAC: Em que sentido a questão racial pode se tornar um entrave para o empreendedorismo nas favelas? 

A gente já sabe que a população negra consome bilhões de reais por ano. Como é possível produzir uma agenda de consenso na sociedade se o racismo entrava o desenvolvimento do país? O racismo é uma força muito forte, e a agenda racial é fundamental. Não existe desenvolvimento no Brasil sem combater o racismo. A agenda racial não é específica dos negros. É uma agenda nacional. 

Por Frederico Kling

Edição 11 – Negócios de impacto

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