Nos primeiros dias de pandemia no Brasil, as organizações da sociedade civil já sabiam que haveria um efeito devastador sobre as populações mais vulneráveis. Os efeitos da necessidade de isolamento social bateriam bem mais forte em pessoas com vínculos informais de trabalho, empregadas em sua maioria no setor de serviços e sem capacidade de poupança. O resultado mais agudo dessa combinação seria a proliferação da fome. Tamanho desafio só poderia ser enfrentado de uma maneira: a mobilização em rede.

“Quando recebemos a notícia de que não poderíamos mais atender, entramos em pânico pela alimentação das crianças que recebíamos. Cerca de 75% delas vinham para comer”, recorda-se Ruth Maria de Oliveira, gestora executiva do Grupo Primavera, que oferece serviços educacionais variados a pessoas entre seis e 18 anos.

Foi entre suas voluntárias que a OSC buscou apoio nos primeiros dias para conseguir recursos para cestas básicas. Logo, o Grupo Primavera recebeu o contato da Fundação FEAC, que estava mobilizando sua rede para lançar a campanha Mobiliza Campinas, distribuindo cartões alimentação para 6.300 famílias de territórios vulneráveis.

“Estava tudo fechado, as pessoas vinham pedir comida na porta da organização. Acabamos envolvidos com essas duas redes: a nossa e a criada em torno do Mobiliza Campinas”, diz Ruth.

A força das redes

O Mobiliza Campinas beneficiou cerca de 26 mil pessoas. Parece uma gota ínfima num oceano de fome que se abateu sobre o Brasil em 2020. Segundo a pesquisa “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil”, realizada em dezembro do ano passado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 19 milhões de pessoas estavam passando fome em 2020. Já a insegurança alimentar de qualquer nível, caracterizada pela incerteza de acesso permanente e pleno a alimentos, atingiu 116 milhões de brasileiros.

O que impediu uma tragédia maior no ano passado foi a proliferação de redes como aquelas criadas em torno do Grupo Primavera e do Mobiliza Campinas. “A sociedade civil teve papel fundamental ao garantir com celeridade o direito à alimentação. Conseguiu fortalecer redes e grupos e direcionou recursos para salvar vidas, garantir alimentos, e itens de higiene e segurança”, aponta Maitê Gauto, gerente de programas da Oxfam Brasil.

Ainda não existem dados sobre a situação da fome em 2021, mas Maitê não hesita em apontar que a situação está pior do que a captada pela pesquisa no fim do ano passado. “A reedição do auxílio emergencial demorou três meses, e ele veio menor e beneficiando menos pessoas.”

Fortalecendo redes

A continuidade da fome demandou uma atuação em rede ainda mais estratégica. O Mobiliza Campinas, por exemplo, lançou uma segunda edição em 2021, com o objetivo de beneficiar 8 mil famílias e trazendo uma novidade: um Comitê Executivo formado por organizações que atuam na ponta.

“Isso permitiu uma troca de informações e de experiências, melhorando até a distribuição de recursos”, diz Ruth, do Grupo Primavera, que faz parte do comitê.

Um exemplo da circulação mais eficiente de recursos e informações aconteceu quando o próprio Grupo Primavera recebeu de empresas, por intermédio do Mobiliza Campinas, uma grande doação de leite e água. Naquele momento, a OSC não precisava desses itens, e a rede conseguiu identificar os locais onde eles seriam mais bem aproveitados.

Mesmo uma organização como a Cufa, presente em mais de 5 mil favelas de todo o Brasil, sentiu a necessidade de ampliar sua rede de atuação com novas parcerias. “Achávamos que haveria uma melhora em 2021, mas isso não aconteceu, pelo contrário. Percebemos que sozinhos não conseguiríamos lidar com o problema”, diz Preto Zezé, presidente da Cufa.

A Cufa se uniu com a Gerando Falcões e com a Frente Antirracista. Em cooperação com a Unesco, lançaram, em março, o Movimento Panela Cheia, que já captou mais de R$ 220 milhões, convertidos em alimentos para populações vulneráveis de todo o país.

“Ser uma rede é um grande ativo, ganhamos escala, alcance e foco. Todos os dias, temos cerca de 40 mil voluntários nas ruas. No Ceará, por exemplo, estávamos presentes em torno de 50 favelas; hoje, estamos em mais de 250”, afirma Preto Zezé.

Fome e desigualdade

Maitê destaca que a insegurança alimentar é apenas a face mais perversa de uma desigualdade já existente e aprofundada durante a pandemia. “A fome é o último limite de dignidade humana, que é não ter o que comer. Sabemos que as pessoas mais pobres vão levar 10 anos para voltar ao mesmo nível de pobreza de antes da pandemia.”

Até por isso, as redes montadas em torno da insegurança alimentar já começam a lidar com outros temas. O grupo formado em torno do Panela Cheia, por exemplo, está criando projetos de fomento ao empreendedorismo na favela como estímulo à geração de renda.

 

 

 

 

Por Frederico Kling

Revista Narrativa Social - 7

Edição 7 – Atuação em rede

Quais são as características de uma boa atuação em rede no terceiro setor?
Atuar em rede é estratégia para abordar complexidade da primeira infância
• Redes são fundamentais para lidar com fome que atinge milhões de brasileiros

Os efeitos da pandemia de Covid-19 na atuação em rede da sociedade civil

Leia outras edições da revista Narrativa Social

Compartilhar no Facebook Compartilhar no LinkedIn Compartilhar no Twitter Compartilhar por e-mail