Uma pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Um olhar sobre a educação, 2022) realizada em 37 países, mostrou que 36% dos brasileiros na faixa entre 18 e 24 anos não estudam nem trabalham. O país é o penúltimo no ranking – perde para África do Sul. Dos 35,1 milhões de brasileiros nessa situação a maior parte é negra (52%) e as mulheres pretas e pardas são as mais afetadas, representam 66% do total.
Esse cenário dramático é uma das razões para a perpetuação das desigualdades, demonstrada no estudo. Os prejuízos na educação e na formação profissional se fazem sentir por gerações. Hoje, embora os pretos e pardos representem 56% da população brasileira, de acordo com o IBGE, seguem sendo o segmento mais vulnerável e com menos oportunidades no que diz respeito à educação e trabalho.
Pouca mobilidade social e racismo “disfarçado”
“A pesquisa mostra que o Brasil praticamente não possui mobilidade social para as populações mais empobrecidas, compostas predominantemente por pessoas negras. Seguimos com um racismo ‘disfarçado’, reforçado pelo mito da democracia racial”, diz Tatiane Zamai, da Fundação FEAC (leia mais sobre as ações da FEAC no quadro abaixo).
Isso no país que tem a maior economia da América Latina e que, em 2023, deverá se tornar a 9ª do mundo com um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 2,13 trilhões, segundo informou o Fundo Monetário Internacional (FMI), no mês passado.
Após o assunto ser minimizado na gestão federal anterior, ele voltou ao centro político no atual governo, que criou o Ministério da Igualdade Racial, que vem desenvolvendo políticas no setor. Também lançou na ONU, esse ano, o 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), dedicado exclusivamente às ações voltadas à igualdade racial.
Para aprofundar essa reflexão, trazemos um bate-papo com pessoas que, de alguma forma, fortalecem a luta antirracista, seja como integrantes do poder público, de organizações da sociedade civil ou como vozes ativas – e altivas – de coletivos e hubs formados nas periferias de Campinas.
Colaboraram a pedagoga Jacqueline Damásio, gestora do Centro de Referência em Direitos Humanos e Combate ao Racismo e à Discriminação Religiosa, da prefeitura de Campinas; o gestor cultural Marcelo Oliveira, coordenador do hub Quebrada em Movimento, que fomenta ações de coletivos periféricos, em Campinas; a educadora social Élice Botelho, da Esalq-USP, que atua articulando pessoas das periferias para a garantia de direitos sociais, e a assistente social Tatiane Zamai, Coordenadora Executiva de Programas da FEAC. Confira as entrevistas abaixo.
Marcelo Oliveira: “A periferia sente racismo e discriminação todos os dias”
O diretor musical e gestor cultural Marcelo Oliveira é coordenador do hub Quebrada em Movimento, uma iniciativa que fomenta ações de coletivos da região de Campo Grande, em Campinas. A ação é realizada pela Casa Hacker com apoio da FEAC. Conheça o hub. Na manhã dessa quarta-feira (29), ele concedeu a seguinte entrevista ao site da Fundação FEAC:
1- Como a discriminação racial é sentida no dia a dia? É explícita ou velada? Pode dar exemplos?
Marcelo Oliveira – Eu sou um jovem preto menos retinto do que outros jovens, que estão mais expostos a esse tipo de violência e, assim, eu demorei muito tempo para reconhecer o que eram essas violências. Eu estava pensando muito sobre isso e aí veio na minha cabeça relacionamentos passados. Eu namorei pessoas brancas e elas demoravam ou até às vezes o relacionamento acabava, e não me apresentavam para a família delas. Essa é uma vivência cotidiana principalmente para as mulheres pretas dentro da periferia. Não ser apresentada como um relacionamento fixo é uma coisa bem marcante.
Tem aquelas perseguições que acontecem no mercado. Pessoas que nos olham como se a gente não pudesse estar naquele lugar ou que não temos poder aquisitivo para estar ali. Achando que a gente vai roubar alguma coisa. Tem outras situações mais sutis. Quando insinuam que a gente não tem algum tipo de conhecimento pelo lugar de onde viemos, pela cor da nossa pele. Isso ainda está muito associado nos dias de hoje, infelizmente.
2- Qual o impacto do racismo e da discriminação na vida da população das periferias?
Marcelo Oliveira – Várias das violências que acontecem dentro da periferia são consequência desse racismo estrutural. Por causa das oportunidades que são tiradas do povo preto, como o acesso ao estudo, a meios de trabalho que poderiam proporcionar mais dignidade, a um poder financeiro maior para que a gente pudesse investir na nossa emancipação, seja através do estudo dos nossos filhos ou do nosso próprio estudo.
Acho que a periferia sente o racismo e a discriminação todos os dias de diversas formas. Essas violências que acontecem dentro da periferia, a violência contra a mulher, a violência contra criança, muitas vezes são por conta dessa outra violência que é o racismo estrutural, que ataca a gente desde a hora que nascemos, na verdade.
3- Quais os caminhos para enfrentar o racismo estrutural na educação, na saúde, no trabalho e nos territórios das cidades?
Marcelo Oliveira – Acredito que é colocar pessoas pretas, pessoas indígenas nesse local de protagonismo. Para que elas sejam não só professores e professoras, mas também diretores e diretoras de escolas, coordenadores pedagógicos. E que a gente fale sobre isso.
Quando ocorrer um caso de racismo dentro de uma instituição, principalmente de educação, que isso não seja colocado por baixo dos panos. Ao contrário, que seja exposto, discutido. A punição é importante, mas eu falo no sentido de abrir um diálogo para entender quais são esses caminhos. Eu acredito que sozinho o povo preto não vai construir essa mudança.
4- Existem coletivos que atuam nesse sentido em Campinas?
Marcelo Oliveira – Vários coletivos levantam essa pauta e fazem ações em prol dela. Aqui [no hub Quebrada em Movimento], por exemplo, a gente já teve o coletivo PsicoPretas. Era um coletivo de psicólogas, a maioria delas eram mulheres pretas que proporcionavam esse atendimento de forma gratuita ou acessível para pessoas também pretas da periferia. Esse foi um dos cases que eu vi nos últimos anos aqui no nosso território.
5- Por que é importante falar e promover reflexões sobre racismo hoje no Brasil?
Marcelo Oliveira – Eu creio que essa história não foi contada da forma que deveria. Por exemplo, no meu Ensino Fundamental e Médio eu não tive muito acesso a essa pauta, da maneira que eu conheci nos movimentos universitários e no próprio Movimento Negro Unificado. Eu acho que a gente ainda tem que falar muito.
Discutir sobre a escravização desses povos, o porquê e quais os resultados que isso gerou para o século XXI. Para que a gente possa começar, através dessa ponta solta, a desfazer esses percalços que o racismo deixou e ainda se perpetuam na nossa sociedade.
Élice Botelho: “É a partir da educação que a gente transforma a realidade”
Formada em gestão ambiental pela Esalq – USP, Élice Botelho, 28 anos, atua como mobilizadora e educadora popular, em Campinas, formando e articulando pessoas das periferias para a garantia de direitos sociais. Ela é a primeira em sua família a cursar ensino superior e seus pais só tiveram a chance de realizar o ensino fundamental quando já eram adultos, na primeira década dos anos 2000.
“Eu sou fruto dos programas da assistência social. Quando criança recebia o Bolsa Família. Só estou aqui hoje conversando com você, formada, com trabalho e carteira assinada porque sei que muita gente lutou antes de mim. Hoje, como educadora social, trabalho no sentido de empoderar as pessoas”, conta Élice, que atua na organização da sociedade civil Minha Campinas. Na quarta-feira (24/11), ela concedeu a seguinte entrevista ao site da Fundação FEAC.
1- O que você pensa sobre o racismo no Brasil hoje e como isso afeta a educação das crianças e jovens?
Élice Botelho – A primeira coisa que é importante ter claro é que o Brasil foi construído em uma base escravocrata e racista. A partir do fim da escravidão, em 1888, esses ex-escravizados foram abandonados sem nenhum tipo de reparação histórica pelo processo anterior de violências e privação de direitos. Eram milhões de pessoas que não tinham direito à moradia, saúde ou educação.
Esse processo se reproduz e tem continuidade dentro de nossa sociedade. Em 1985, os analfabetos eram em sua maioria, pessoas negras, que não tinham direito à educação. Conquistamos esse direito somente em 1988, com a Constituição Federal. A forma como o racismo se estruturou no Brasil e como ele se perpetua ainda nos dias de hoje traz uma perspectiva de morte, de negação do direito à vida digna para as pessoas negras.
2- Quais os caminhos para enfrentar o racismo estrutural na educação?
Élice Botelho – Bom eu acho que temos algumas saídas. Entre elas, a valorização do trabalho dos profissionais da educação, com mais estrutura e melhor remuneração, e favorecer uma formação de mais qualidade. Prepará-los para a aplicação da lei 10.639, que inclui o ensino da cultura afro-brasileira dentro das escolas. A gente tem um avanço sobre isso, mas ainda está muito aquém do que deveria ser. Tem muita escola que não aplica a lei, mesmo sendo obrigatória.
Tudo isso é fundamental na luta por uma sociedade mais equânime. A gente sabe que a educação é o berço da nossa sociedade. É a partir da educação que a gente consegue transformar a realidade. Desenvolver senso crítico, exercer a criatividade, fortalecer vínculos. A escola tem esse potencial de fazer tudo isso e muito mais. E é justamente por não ter estrutura que a gente não consegue avançar. Ao contrário, temos uma defasagem no ensino. A educação é o meio principal de fazer transformação social concreta na nossa realidade.
3- Por que é importante falar e promover reflexões sobre racismo hoje no Brasil?
Élice Botelho – Em primeiro lugar, a gente tem aí um processo de reparação histórica mesmo. O Banco do Brasil, inclusive, soltou uma nota recentemente falando sobre ter apoiado os processos de opressão e exploração da população negra.
Então, é importante falar para que a gente reconheça que o Brasil foi construído com uma base racista. Porque a partir do momento que a gente explicita isso a gente consegue olhar para o que precisa ser consertado. Quando a gente se nega a olhar para um problema a gente não consegue resolver o problema, porque fingimos que ele não existe. Trazer a reflexão sobre o racismo é olhar para como ele estrutura nossa sociedade. E como a gente pode, então, desconstruir, reformar, refazer as bases da nossa sociedade numa lógica mais equitativa com direitos para todo mundo.
A gente tem um processo de apagamento da história negra no Brasil. De onde vieram, quem eram seus antepassados? Então falar sobre o racismo é também resgatar o passado da população negra. É fundamental falar sobre a questão racial, trazer essas reflexões sobre a população negra e o direito de saber sua própria história.
4- De que forma você enfrenta o racismo em seu trabalho como educadora?
Élice Botelho – Bom e falar disso até me emociona. Porque como educadora eu venho também nesse lugar do contraponto, ou seja, se a realidade é dura e nos mostra que a gente tem que aceitar as migalhas, eu venho fortalecer nossa história, falando para as pessoas que eu atendo sobre a importância de saber do nosso passado. Trazendo a história dos que lutaram antes de mim para garantir que hoje eu tivesse direitos, como o direito à universidade pública, através das cotas, com bolsa.
Ser uma educadora é mais do que passar um conteúdo, é dar para as pessoas condição de ler a própria realidade e saber o que nela lhe serve ou não, e o que nela tem que ser transformado ou não. Eu só estou aqui hoje conversando com você, com trabalho, com CLT, formada porque eu sei que muita gente lutou antes de mim. Então, meu trabalho como educadora vai muito nesse sentido de empoderar, de trazer para essas pessoas que estão aí nos projetos que eu faço parte que a realidade pode ser transformada.
5- Como isso afetou/afeta a sua vida?
Élice Botelho – O racismo e a discriminação afetam e continuam afetando a minha vida de forma bastante intensa. Até recentemente nem meu pai nem minha mãe tinham concluído o Ensino Fundamental. Quando os dois terminaram o ensino fundamental aqui em Campinas, eu já era adolescente.
Eu sou fruto também do programa de assistência social. Quando eu era criança recebi Bolsa Família, que foi importante para garantir direitos básicos na minha casa. Quando eu era adolescente, consegui com muito esforço a partir de um cursinho popular, que funcionava no meu bairro, passar numa escola técnica pública.
Depois, tive a sorte de ir estudar na Esalq, que é o campus da USP, em Piracicaba. Quando a entrei na universidade, em 2012, eu era uma das únicas mulheres negras de cabelo black power. Explicitamente, eu sentia que existiam olhares diferentes para mim e isso sempre me moveu para que eu me colocasse nos espaços para tentar mudar o futuro.
Mesmo no mercado de trabalho, por muito tempo trabalhei na informalidade porque esse é o lugar que é dado para população negra. Só muito recentemente eu fui ter meu primeiro trabalho de carteira assinada.
Jacqueline Damásio: “A luta e as práticas antirracistas devem estar cotidianamente presentes”
Desde 2017, a pedagoga Jacqueline Damásio é gestora do Centro de Referência em Direitos Humanos e Combate ao Racismo e à Discriminação Religiosa, órgão ligado à Secretaria de Assistência Social, Pessoa com deficiência e Direitos Humanos, da prefeitura de Campinas.
Ela conta que hoje as escolas municipais realizam a semana da igualdade racial em novembro, e que estes marcos são importantes e contribuem para a conscientização das pessoas. “Para a luta antirracista esse é um marco simbólico porque promove reflexões que são inadiáveis em nossa sociedade”. Leia abaixo a entrevista:
1- O mito da democracia racial segue dificultando avanços?
Jacqueline Damásio – Nosso sistema de colonização, que veio com muita exclusão, violência e negação dessas pautas, formou essa base teórica, que é eurocentrada, e coloca as pessoas numa condição muito restrita de pensamento, que não favorece reflexões. Quando a gente parte desse princípio de que somos todos iguais, um princípio que, institucionalmente, é adotado na Educação, na Saúde, no Judiciário, nós estamos falando de um freio nessa construção de pensamento mais libertária, voltada para as questões democráticas e das minorias – e quando a gente diz minorias nos referimos a ter menor representatividade (leia mais sobre o assunto na reportagem Representatividade na infância).
“As pessoas têm de avançar muito na discussão das cotas raciais e das políticas públicas de ações afirmativas para que, assim, pensem, instrumentalizem, veiculem e difundam essa equidade que a gente tanto necessita”
Jacqueline Damásio
Na verdade, a gente pode dizer que houve uma articulação ideológica para isso. O sucesso de poucos ícones pretos e pardos é utilizado para fazer com que as pessoas acreditem que houve sim uma um avanço na dinâmica de igualdade racial. No entanto, sabemos muito bem que as pessoas ainda precisam avançar muito na discussão das cotas raciais, trazer essa discussão da reserva de vagas, das vagas afirmativas, das políticas públicas de ações afirmativas. Para que assim pensem, instrumentalizem, veiculem e difundam essa equidade que a gente tanto necessita.
2- Qual a importância do Dia da Consciência Negra no combate à discriminação?
Jacqueline Damásio – É um grande avanço levando em consideração que, em Campinas, por exemplo, as escolas municipais têm a Semana da Consciência Negra. Para a luta antirracista esse é um marco simbólico porque promove reflexões que são inadiáveis em nossa sociedade.
Em algum momento da sua agenda mensal essa pauta irá perpassar você. É claro que deveria ser uma pauta diária, através de ações que se façam presentes com constância. A luta e as práticas antirracistas devem estar cotidianamente presentes.
3- Como você enxerga este debate em nossa sociedade hoje?
Jacqueline Damásio – O que nós temos aqui, em 2023, é a percepção de uma maior consciência e participação nesse debate por parte da população não negra. Um debate que nunca foi só do segmento negro, mas tem de abranger toda a sociedade. Essa tomada de consciência, essa postura em relação ao mês da consciência negra, tem ganhado corpo no sentido de as pessoas se entenderem enquanto antirracistas e participarem dessas movimentações. Então, eu digo que é um mês que reverencia e evidencia uma pauta que está colocada para nós o ano todo.
Projetos da FEAC trabalham para enfrentar desigualdades |
A Fundação FEAC é conhecida pelos trabalhos conduzidos nas regiões de maior vulnerabilidade social de Campinas. Esta atuação é fortemente impactada pelas desigualdades, sendo a racial um dos marcadores sociais mais contundentes. A assistente social Tatiane Zamai, que atua há 13 anos no terceiro setor e atualmente é Coordenadora Executiva de Programas na Fundação FEAC, falou sobre a importância e prioridade do tema na hora de elaborar projetos e estratégias voltadas a superar vulnerabilidades sociais. 1- Qual a importância do Dia da Consciência Negra no combate à discriminação? Tatiane Zamai – O Dia da Consciência Negra contribui para dar mais visibilidade nacional à pauta, impulsiona a criação e manutenção de agenda antirracista e de combate à desigualdade social no país. Não menos importante, o dia explicita sobre a luta, avanços e conquistas do povo negro e sobre a celebração da cultura afro-brasileira. Mas também é importante para propor que pessoas brancas reconheçam o problema e façam análises sobre suas ações. 2- Como a desigualdade racial impacta os públicos com os quais a FEAC trabalha? Tatiane Zamai – Trabalhamos com pessoas que residem nas periferias de Campinas, principalmente com as que se encontram em maior situação de vulnerabilidade e risco social. A desigualdade racial é estrutural, logo afeta em todos os sentidos a população negra, reforço aqui, as desvantagens nas oportunidades de escolhas, nos meios de conseguir acesso a direitos sociais e humanos, como renda, moradia, saúde, educação, segurança, lazer, cultura. Quando comparados aos de pessoas brancas, todos esses e outros índices, mostram que a população negra está em expressiva desvantagem. Desta forma é imprescindível, na construção dos projetos e iniciativas da Fundação FEAC, consideramos os marcadores sociais que colocam determinados grupos em situação de desigualdade, observando suas causas e consequências, sempre baseados em dados e evidências. 3- Quais projetos enfrentam as desigualdades em suas iniciativas? Tatiane Zamai – Considerando toda conjuntura, história e contexto social desigual que estamos inseridos, quando intervimos nas periferias estamos criando fissuras nesta estrutura e contribuindo para a redução das desigualdades sociais e raciais em todas as nossas iniciativas. Entretanto gostaria de ir além, enfatizando que alguns dos projetos têm avançado em suas intencionalidades e estratégias, viabilizando que pessoas negras tenham cada vez mais autonomia, espaços de fala, e que ocupem lugares de liderança e decisão, com ganho de autoestima e valorização de saberes e suas potencialidades, além de beneficiar todos os seus atendidos dentro de cada ecossistema de desenvolvimento social e coletivo. 4- Como as organizações do terceiro setor podem fazer a diferença na luta antirracista? Tatiane Zamai – Antes de tudo saliento a importância de olharmos para a população negra, para as favelas e periferias como parceiras do desenvolvimento econômico e da transformação social e não como pessoas e como um lugar que precisa ser salvo por uma “bala de prata” vinda de pessoas e organizações de fora. As periferias são territórios negros no Brasil. Para romper com estruturas de desigualdade, o antirracismo precisa ser um valor, uma prática cotidiana em todas as ações e intervenções do terceiro setor. O terceiro setor, por sua natureza de compromisso com os problemas sociais, pode e deve inspirar a sociedade na efetivação de práticas políticas de diversidade, equidade e inclusão.
O ecossistema do Investimento Social Privado deve viabilizar que as estratégias sejam construídas junto (e pelas) as populações que mais sofrem com a desigualdade social, garantindo que essas pessoas também ocupem lugares de poder e decisão e que a distribuição dos recursos técnicos e financeiros alcance as ações e os projetos daqueles que estão na ponta, como as organizações sociais locais e iniciativas populares. Impulsionando-as de maneira organizada e intencional, sobretudo para que haja possibilidades reais de geração de impacto positivo, continuidade e sustentabilidade a longo prazo. 5- Qual o impacto da falsa ideia de democracia racial criada no Brasil? Tatiane Zamai – O mito da democracia racial é um amortecedor gasto e de má qualidade. Sofremos sérias consequências estruturais e sociais em razão de narrativas que desconsideram todo processo histórico brasileiro. A história do Brasil nos mostra, sem sombra de dúvidas, que a democracia racial nunca existiu. Em uma democracia racial deve haver igualdade e equidade de direitos para todos, independentemente da cor da pele ou origem étnica. Somos um país marcado pela escravidão, que reverbera em um contexto completamente desigual e excludente para a população negra até hoje. Após a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República foi conveniente para a alta sociedade a propagação de que havia uma total harmonia entre as raças, ou seja, uma “democracia racial”, desconsiderando toda barbárie e a violência moral, sexual, psicológica, financeira, a exclusão, ausência de direitos, tais como o não acesso ao voto, moradia, saúde, possibilidades de trabalho, alfabetização, entre tantas outras questões. A alta sociedade, que conforme mostram diversas pesquisas, é composta majoritariamente por homens brancos, tem sustentado um discurso de que o fracasso na vida das pessoas negras é culpa delas mesmas, considerando que o sistema tem ofertado oportunidades de ascensão igualitária para todos. Ao contrário disso, uma pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, mostra que o Brasil praticamente não possui nenhuma possibilidade de mobilidade social para as populações mais empobrecidas, composta predominantemente por pessoas negras. Seguimos com um racismo “disfarçado”, reforçado pelo mito da democracia racial e naturalizado no cotidiano desde expressões sutis até nas demonstrações mais violentas.
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Por Natália Rangel
Edição 33 – Igualdade racial
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