A norte-americana Helen Keller (1880-1968) ficou conhecida como a primeira pessoa surdocega da história a conquistar um diploma de ensino superior. Para se tornar filósofa, escritora e ativista social, em uma época em que muito pouco se conhecia sobre a deficiência, ela enfrentou todo tipo de barreiras e preconceitos.

Sua história é retratada no filme O milagre de Anne Sullivan, de Arthur Penn, ganhador de dois Oscar, em 1962. Durante a sua jornada, ela recebeu o apoio de sua professora, Anne Sullivan, que a ensinou a se comunicar por meio da escrita na palma da mão.

Hoje, estima-se que existam 40 mil pessoas surdocegas no Brasil, segundo a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis). Além das dificuldades cotidianas para se locomover, se comunicar e se integrar ao ambiente familiar e escolar, os surdocegos hoje, mais de um século depois de Helen Keller, ainda têm de encarar o preconceito.

A falta de acessibilidade, de estímulos e de conhecimento sobre a surdocegueira muitas vezes provoca o isolamento destas pessoas e dificulta que elas realizem seus projetos e sonhos. “O fato de não conseguirem se comunicar ou fazer uso da tecnologia gera um contexto de isolamento, onde ficam ‘alienados’ com relação ao que está acontecendo ao seu redor. Imagina você não conseguir escolher o que quer comer, pedir a comida na hora que quer ou não ter privacidade na hora de mandar uma mensagem. Esta falta de autonomia tem um impacto muito grande na vida destas pessoas”, diz Viviane Machado, líder do Programa Mobilização para Autonomia, da Fundação FEAC.

A surdocegueira é uma deficiência multissensorial, que afeta a visão e a audição (leia mais no box). De acordo com Márcia Helena Ramos Arias, fonoaudióloga, fundadora e coordenadora técnica do Centro de Apoio e Integração do Surdocego e Múltiplo Deficiente (CAIS), a surdocegueira se manifesta em diferentes graus. Um surdocego pode ter perda auditiva leve com perda visual severa, ou pode apresentar ambos os sentidos com perdas severas. A perda total é rara.

A surdocegueira

 

A surdocegueira se manifesta em diferentes graus de severidade e é classificada de duas formas:

  • Surdocegueira Congênita (ou pré-linguística): acontece quando a pessoa nasce com deficiência auditiva e visual ou desenvolve a surdocegueira até os cinco anos, idade na qual a linguagem não está estruturada ainda.
  • Surdocegueira Adquirida (ou pós-linguística): acontece quando a pessoa já possui a perda de um sentido, visual ou auditivo, e, em algum momento da vida, começa a perder o outro também. Neste caso, a pessoa já possui uma língua, mas, devido às circunstâncias, precisa se adaptar a uma nova.
 

 

A perda do sentido, muitas vezes, não afeta por completo a sua funcionalidade, ou seja, muitas vezes uma pessoa que tem 20% de visão pode saber usá-la melhor do que outra que tem 40%. O fator determinante disso está no estímulo que o surdocego recebeu ao longo do seu desenvolvimento.

“Se na casa de um surdocego com baixa visão só tem cores básicas como bege, cinza e branco, ele perde a oportunidade de ver contrastes. Então para ele, tudo começa a ser a mesma coisa”, explica Márcia. Para a fonoaudióloga, diferentes cores contrastantes como vermelho, azul e amarelo ajudam a estimular a visão.

A falta de políticas públicas, acessibilidade e informação tornam o dia a dia do surdocego mais desafiador. Algumas importantes iniciativas podem contribuir no enfrentamento destes desafios.

Ampliando o círculo social

O projeto “Inter(agindo) com o Mundo” nasceu do desejo de pessoas surdocegas e uma equipe técnica do CAIS explorarem para além das experiências vividas por meio do projeto “Ampliando Horizontes: vendo e ouvindo sonhos“, executado até o início deste ano, também em parceria com a Fundação FEAC.

As oficinas promovidas pelo projeto “Ampliando Horizontes” tinham como objetivo incentivar a autonomia e promover a convivência do surdocego com outras pessoas com as mesmas deficiências e dificuldades. “Um dos participantes me disse no início que não se sentia capaz de fazer as atividades. Depois de ver uma pessoa fazendo crochê, outro indo viajar e um outro namorando, ele falou, surpreso: ‘Nossa, é possível fazer tantas coisas, né?'”, conta Paula Ramos Arias, pedagoga, psicóloga e gestora de projetos no CAIS.

A experiência e a convivência o encorajaram a ampliar a sua própria interação com o mundo e as pessoas. A partir desta vivência, evidenciou-se também para a equipe técnica a necessidade de diversificar o repertório social dos surdocegos, estimulando uma segunda opção de comunicação – com esse objetivo foi iniciado o projeto Inter(agindo) com o Mundo.

Porque nem todo surdocego se comunica da mesma forma: tudo depende do grau dos seus resíduos auditivo e visual e da sensibilidade que possui com uma das nove formas de comunicação. Entre elas: libras táteis, braille tátil e escrita na palma da mão. Para conhecer as formas de comunicação, consulte a cartilha.

Aprender uma segunda opção pode ajudar a estreitar laços familiares. Márcia conta sobre uma frequentadora do CAIS que estuda libras, mas a sua família não se interessou em aprender a língua de sinais. Agora, no projeto, ela está aprendendo a escrita na palma da mão e exercita com o marido, filho e neto.

Segundo Viviane Machado, da FEAC, o projeto também busca ajudar pessoas que estão perdendo o outro sentido a se readaptarem. “Uma pessoa com deficiência auditiva que antes se comunicava por libras, e agora passa a perder também a visão, precisará fazer uso de novas formas de comunicação de acordo com seu novo contexto”, diz Viviane.

Para coletar e analisar dados, foi aplicado um instrumental de pesquisa para os surdocegos que estão participando do projeto. Os próprios usuários puderam opinar a respeito das necessidades e dificuldades que encontravam para se comunicar e os aplicativos que desejariam utilizar. Eles também falaram sobre como a ausência desses itens em seu cotidiano contribui diretamente para o seu isolamento social e sobre outros reflexos disso em suas vidas.

O projeto conta com uma equipe de profissionais: uma professora de orientação e mobilidade, psicóloga, pedagoga especialista em libras e uma intérprete de libras. As atividades, destinadas a surdocegos maiores de 18 anos, começaram em maio de 2022 e o curso tem duração de um ano.

Autonomia para pedir um carro do Uber

No planejamento das ações do projeto “Inter(agindo) com o Mundo” os surdocegos também expressaram outros desejos, entre eles conhecer outras possíveis funcionalidades do celular, de acordo com a sua realidade.

Nas atividades eles aprenderam a sentir a posição das teclas, realizar ligações, conversar no WhatsApp, pedir delivery no iFood e chamar um carro do Uber, por exemplo. A encarregada de ensinar os alunos é uma surdocega, assim como eles, que frequenta o CAIS. “Na hora de ir embora uma aluna se aproximava, entregava o celular e pedia para chamar o Uber. Hoje ela mesma chama, com dois meses de aula”, conta Márcia.

O objetivo é promover autonomia para que os surdocegos consigam acessar sozinhos os aplicativos e realizar ligações.  São aprendizados simples e que têm um impacto enorme no dia a dia, com ganho de privacidade e possibilitando, por exemplo, que acessem novos conteúdos e tenham liberdade de escolha como qualquer outra pessoa.

A conquista da independência

Andrezza Pitelli da Fonseca em frente do Centro de Apoio e Integração do Surdocego e Múltiplo Deficiente (CAIS) em Campinas

Dentro do CAIS, Andrezza levou as amizades feitas nas atividades para fora do projeto, algo que ela valoriza muito.

Ser independente é uma das maiores conquistas para Andrezza Pitelli da Fonseca. Surda do ouvido esquerdo e com perda visual de 60% no olho direito, condições geradas pela rubéola congênita, Andrezza iniciou sua jornada no CAIS com o projeto Ampliando Horizontes e, hoje, é uma das alunas mais ativas do Inter(agindo) com o Mundo.

Para chegar até Andrezza, o CAIS fez parcerias com outras instituições para identificar usuários surdocegos e encaminhá-los aos seus projetos. Uma das instituições parceiras é o Centro Cultural Louis Braille de Campinas, instituição que Andrezza também frequenta.

Andrezza não possui dificuldades com a comunicação oral, mas viu a necessidade de aprender libras para ter mais autonomia e aumentar seu círculo social. “Você vai a um lugar e tem uma pessoa que é surda. É importante eu aprender libras para que eu possa me comunicar com ela. Para mim está sendo muito interessante essa comunicação nova.”

Seu conhecimento em libras não é exatamente novo. Dentro do Centro Cultural Louis Braille, Andrezza aprendeu o básico e agora, no projeto, tem a oportunidade de se aperfeiçoar e colocar em prática com outros surdocegos.

Aliás, a sua rede social cresceu e ela fez diversos novos amigos desde que começou a frequentar o CAIS. Levou as amizades feitas nas atividades para fora do projeto, algo que ela valoriza muito. “A gente tem de construir a nossa independência, aprender a se virar e conhecer o mundo. E estar preparado, porque lá fora a gente enfrenta cada coisa”, diz Andrezza.

Falta de conhecimento sobre a surdocegueira

Tornar o projeto conhecido e acessível a outros surdocegos que não fazem parte do CAIS está sendo um desafio. A falta de dados oficiais atrapalha o alcance na cidade de Campinas. “Nós já levamos à Prefeitura e à Câmara Municipal esta necessidade de realizar um censo na cidade. Sempre falam que vão fazer, mas não fazem”, lamenta Márcia.

Segundo ela, é difícil saber quantos surdocegos realmente existem no Brasil pois a contagem do censo apresenta falhas. Na hora de classificar, o agente do censo assinala tanto a opção de deficiente visual quanto a de deficiente auditivo, o que acaba contabilizando duas pessoas.

O projeto está sendo divulgado por meio de materiais, como cartilhas e vídeos, compartilhados nas redes sociais. “Estamos tentando com as clínicas particulares, para que as pessoas saibam que existe um serviço para atendê-las. Principalmente adultos e idosos. Eles ficam dentro de casa, e queremos que eles se movimentem, que eles tenham mais qualidade de vida”, diz Paula.

O desconhecimento da surdocegueira também se reflete na ausência de acessibilidade na cidade. Por causa da falta de transporte adaptado, muitos surdocegos não conseguem chegar ao CAIS. Há três anos, a instituição vem tentando colocar em prática a Lei do Transporte Adaptado para surdocego em Campinas, legislação que já é realidade na cidade de São Paulo.

“Acreditamos que existem muito mais pessoas que precisam do atendimento e que não sabem que ele existe. Então, buscamos divulgar para ampliar o alcance deste trabalho tão importante. Cada mês, cada semestre de estímulos e atividades faz muita diferença”, diz Márcia.

Por Pietra Bastos