Segundo dados publicados em 2021 pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, com base em dados de 2019, cerca de 40% das crianças brasileiras com menos de nove anos vivem na pobreza, o que significa que mais de 25 milhões de pessoas nessa faixa etária moram em lares com renda média mensal menor que R$ 436.
Mais de 30 anos depois da Constituição Federal (1988) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que pela primeira vez reconheceram que crianças e adolescentes são sujeitos de direito, os dados acima parecem indicar que o Brasil falhou em sua missão de combater a pobreza infantil.
Victor Graça, gerente executivo da Fundação Abrinq, que promove os direitos da criança e do adolescente, pondera que houve avanços nas últimas décadas, mas que não foram suficientes.
“Aconteceu uma queda notável na mortalidade infantil, e a educação básica foi praticamente universalizada. Mas as melhoras não foram distribuídas igualmente pela sociedade. Quem está abaixo da linha da pobreza se beneficiou menos”, diz Victor.
Jair Rezende, superintendente socioeducativo da Fundação FEAC, ressalta, por sua vez, que “a pobreza expõe as crianças a muitas situações de vulnerabilidade e causa impactos negativos em seu desenvolvimento pelo resto da vida”.
Ele acrescenta a importância do investimento nas crianças para o desenvolvimento do Brasil. “A ciência já demonstrou que é muito mais barato investir no desenvolvimento pleno das crianças do que tentar amenizar no futuro os problemas adquiridos nessa fase. É uma questão humanitária combater a pobreza. Mas também é uma questão de economia nacional.”
Multidimensionalidade
As tais vulnerabilidades citadas por Jair estão ligadas ao fato de que a pobreza não é um fenômeno apenas financeiro, mas está relacionada a uma série de privações que afetam as pessoas de diversas maneiras. A pobreza é, portanto, multidimensional.
“A criança tem varias necessidades, além de renda, que permitam condições básicas de vida e dignidade. São necessárias políticas públicas que garantam seus direitos à educação, à alimentação, à saúde, ao acesso a saneamento básico”, explica Liliana Chopitea, chefe de políticas sociais, monitoramento e avaliação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil.
Em 2018, o Unicef publicou o primeiro – e até agora único – estudo já feito sobre a pobreza infantil multidimensional no Brasil. A pesquisa “Bem-estar e privações múltiplas” complementa dados sobre privações monetárias com informações sobre outras seis dimensões, como saneamento e domicílio adequado, e conclui que, naquele momento, cerca de 50% das crianças e adolescentes brasileiros, a maioria negros, também sofriam ao menos uma das privações não monetárias.
Liliana lembra que o país já chegou a fazer políticas públicas, como o Bolsa Família, que associavam a dimensão financeira da pobreza a outros fatores. “É um benefício mundialmente reconhecido, que, além de transferir renda, também lida com temas de educação e saúde. Ainda assim, faltavam outras dimensões.”
A especialista destaca ainda a importância do Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, que “traz uma agenda multidimensional e uma base jurídica para que o tema entre no orçamento federal”, e o Plano Plurianual 2020-2023, que prioriza a primeira infância com uma agenda multissetorial, como uma base jurídica para que o tema entre no orçamento federal.
A multidimensionalidade demanda uma capacidade de coordenação entre várias áreas da administração pública que muitas vezes é difícil de acontecer. “Existe uma tendência a haver uma compartimentalização, os órgãos públicos não se conversam para criar políticas intersetoriais”, constata Jair.
Ele conta uma história exemplar, que aconteceu em uma cidade de Minas Gerais, que demonstra essa compartimentalização. “Conheci uma família que quase perdeu o Bolsa Família porque o filho não estava indo na escola. Mas essa criança estava, na verdade, fazendo um tratamento de câncer em outra cidade pago pela própria prefeitura que também cuida do benefício.”
Em 2020, a Fundação FEAC passou por uma revisão estratégica para trazer esse olhar multidimensional na sua atuação. “Nossos programas trabalham com diversos fatores importantes para as crianças, como o fortalecimento de vínculos, a educação integral e o desenvolvimento das comunidades”, detalha o superintendente socioeducativo.
Agravamentos
O estudo citado no início da reportagem usa dados anteriores à pandemia. Ainda que não haja novas informações sobre o tema, uma outra pesquisa do Unicef ajuda a dar uma dimensão do que pode estar acontecendo depois de quase dois anos de Covid-19.
A terceira rodada do estudo “Impactos primários e secundários da COVID-19 em crianças e adolescentes”, lançado em junho de 2021, aponta que em 64% dos lares em que residem crianças ou adolescentes houve perda de renda em relação ao pré-pandemia.
As populações mais vulneráveis também foram as mais afetadas pela queda de rendimentos, pois 80% dos respondentes que ganhavam até um salário mínimo disseram ter perdido total ou parcialmente sua renda.
Victor, da Fundação Abrinq, ressalta também o impacto do fechamento das escolas durante a pandemia. “Cerca de 9 milhões de crianças dependem da merenda escolar para se alimentar. Além disso, a escola também é espaço importante para denúncias de violências de todos os tipos.”
Diante dos efeitos da pandemia e do agravamento de uma situação que já era ruim, Liliana defende uma coalização entre poder público e sociedade civil para tentar avançar políticas públicas para a infância no orçamento federal de 2022, que está em discussão.
Jair, no entanto, é pessimista em relação a isso: “Eu vejo em Campinas uma disposição da sociedade civil e do poder público de se unir em torno do tema da infância. Mas não consigo enxergar essa articulação no plano nacional.”
De fato, a prefeitura de Campinas criou, em 2018, um plano decenal de ação em torno da primeira infância. O Primeira Infância Campineira reúne órgãos públicos e sociedade civil para a discussão e implementação de políticas públicas. Já Recife criou uma secretaria-executiva para a Primeira Infância também para fortalecer a articulação intersetorial ao redor do tema.
Jair reforça a importância de se apostar mais nesse tipo de estratégia. “Em vez de compartimentalizar as discussões em cada secretaria, unificar tudo em um órgão apenas para lidar com a multidimensionalidade da questão infantil poderia dar resultados melhores”, avalia.
#FEACIndica: “A economia dos pobres” e as políticas contra a pobreza |
Em 2019, Esther Duflo e Abhijit Banerjee ganharam, ao lado de Michael Kremer, o Prêmio Nobel de Economia. Entre as principais obras da dupla está o livro “A economia dos pobres” (Zahar, 2021), que trata de uma série de políticas públicas e iniciativas capazes de terem impacto no combate à pobreza. Duflo e Banerjee falam sobre uma série de ações ao redor do mundo que alcançaram resultados positivos verificáveis para o bem-estar de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade. Os dois economistas são entusiastas das chamadas políticas focalizadas, que pregam que não basta apenas despejar recursos no combate à pobreza, é necessário também saber exatamente como o investimento será usado e quais os resultados esperados. No livro, portanto, não haverá iniciativas bilionárias e espalhafatosas de combate aos efeitos da pobreza. As histórias que se encontram ali estão muito mais ligadas a pequenas iniciativas capazes de grandes resultados, como instalar um dispensador de cloro ao lado de uma fonte de água que abastece uma comunidade na África. |
Por Frederico Kling
![]() | Edição 10 – Direitos da criança• Pobreza atinge cerca de 40% das crianças brasileiras com menos de 9 anos
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