Por Frederico Kling
Pandemia invisível. Esse foi o termo usado por Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora-executiva da ONU Mulheres e vice-secretária geral das Nações Unidas, para descrever, em abril de 2020, o possível aumento de casos de violência contra mulheres e meninas com o avanço de medidas de isolamento para conter a pandemia. Quase um ano depois, dados e relatos confirmam o temor de Phumzile sobre a situação de crianças e mulheres.
Entre 2017 e 2019, houve um aumento de 22% nos crimes de estupro de vulnerável (pessoas com menos de 14 anos) no estado de São Paulo. No primeiro semestre de 2020, porém, ocorreu uma queda de 15%. Os dados são do relatório Análise da ocorrência de estupro de vulnerável no estado de São Paulo – elaborado pelo Instituto Sou da Paz, Ministério Público de São Paulo e Unicef –, de novembro de 2020.
O que à primeira vista parece uma boa notícia trata-se, na verdade, de um sinal preocupante. A queda não se deu porque diminuíram os casos, e sim porque eles pararam de ser notificados.
“Havia a preocupação de que fosse haver subnotificação com o fechamento de canais de denúncia, e foi isso que o relatório mostrou”, afirma Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz e autora do documento.
Juliana Di Thomazo, líder do Programa Primeira Infância em Foco, da Fundação FEAC, aponta que o fechamento de escolas pode explicar a subnotificação. “Elas são parte da rede de proteção das crianças. Muitos casos de violência, principalmente os pouco escancarados, são percebidas no contato cotidiano, e os professores são atentos ao comportamento dos alunos.”
A pandemia, segundo Juliana, também deixou as crianças ainda mais vulneráveis e expostas, pois os pais muitas vezes tinham de procurar alternativas de onde deixá-las para irem trabalhar.
Agravamento da violência
As mulheres foram outro público vulnerável que teve sua situação especialmente agravada por causa da pandemia. A FEAC tem um projeto, o Entre Laços e Nós, que lida com a violência de gênero, fazendo o atendimento a vítimas e um trabalho de desnaturalização desse fenômeno.
“A iniciativa atende cerca de 140 pessoas, entre crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, predominantemente, mulheres, divididas em grupos, mas tivemos de parar os encontros presenciais por causa das restrições sanitárias. Nós percebemos uma diminuição das notificações de violência”, explica Tamiris Cantares, psicóloga do Progen, OSC parceira da FEAC na execução do projeto.
Em casos mais graves, no entanto, foi preciso amparar presencialmente mulheres vítimas de violência. “Houve momentos em que tivemos de acolher a vítima e até ir com ela no Instituto Médico Legal para fazer exames”, conta Paloma Casarini, coordenadora técnica do Progen.
“Temos um contexto de crise sanitária e econômica, no qual a proximidade entre vítima e agressor se torna mais frequente, aliado à dificuldade de acesso a locais seguros de acolhida e atendimento. Isso gera um cenário ainda mais grave para uma situação já tão séria no nosso país”, ressalta Natália Valente, líder do Programa Enfrentamento de Violências da FEAC.
Uma das consequências da maior dificuldade para denunciar violência contra mulheres é que os casos acabam vindo a público em situações mais graves do que antes. “Nós éramos procurados por mulheres que foram xingadas, humilhadas. Mas, com a pandemia, elas começaram a chegar já com a situação bem agravada, em alguns casos, até mesmo precisando de acolhimento”, diz Elza Frattini, coordenadora do Centro de Referência e Apoio à Mulher (Ceamo), da prefeitura de Campinas.
Uma das principais dificuldades é romper o ciclo de violência ao qual a mulher está submetida. É muito difícil que ela consiga fazer isso sozinha, muitas vezes, é necessário que alguém a ajude. O isolamento decorrente da pandemia, no entanto, invisibilizou ainda mais uma situação que já era bem invisível. “A mulher ficou sozinha”, resume Paloma.
Lidando com a violência
No final de janeiro, a história de um menino mantido acorrentado dentro de um barril, em Campinas, chocou o país. O caso só foi revelado porque vizinhos notaram que a criança não aparecia mais para brincar na rua, e entraram em contato com a polícia.
Se a história é um exemplo de uma violência invisível em decorrência da pandemia, ela também traz consigo uma das maneiras de interrompê-la. Quando instituições como escolas e OSC estão fechadas ou com seu funcionamento limitado, a vizinhança se torna fundamental.
“É necessário aumentar a conscientização sobre o tema e divulgar canais de denúncia virtual”, alerta Cristina, do Instituto Sou da Paz. A FEAC fez exatamente isso após o caso do menino, fazendo uma matéria e posts com informações sobre como denunciar violências contra crianças.
No caso de agressão às mulheres, vai-se contra o velho ditado: em briga de marido e mulher, mete-se a colher, sim. “Trata-se de a sociedade conseguir reconhecer uma situação de violência e levar para a vítima as informações necessárias para que ela consiga sair do ciclo”, diz Elza, do Ceamo.
Durante a pandemia, o Progen tem realizado envios e publicações de vídeos, atendimentos remotos via vídeo chamada e contatos telefônicos com os participantes, falando sobre a violência contra como mulheres, crianças e idosos, e divulgando canais de denúncia e atendimento a esse público. Essas informações e esse olhar da comunidade são ainda mais importantes agora que a pandemia está em seu pior momento, demandando ações ainda mais restritivas.