Por Jair Resende*

Definitivamente, as imagens da fome voltaram a ocupar o nosso noticiário. Dia após dia, cenas de filas de pessoas disputando ossos em um açougue ou garimpando restos em um caminhão com peles descartadas por supermercados vão, infelizmente, se tornando frequentes.

Em dois anos, o número de pessoas passando fome no Brasil quase duplicou. De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil, divulgado em junho, 33,1 milhões de brasileiros se encontram nessa situação. Um número muito superior ao da população inteira de estados como Rio de Janeiro (21,4 milhões de habitantes, IBGE, 2021) ou Minas Gerais (17,5 milhões).

Nesse contexto, os pobres ficaram ainda mais pobres e famintos. De acordo com o estudo intitulado Insegurança Alimentar no Brasil: Pandemia, Tendências e Comparações Internacionais, da FGV Social, divulgado em maio, o aumento da insegurança alimentar entre os 20% mais pobres no Brasil durante a pandemia foi de 22 pontos percentuais. Passou de 53%, em 2019, para 75%, em 2021, nível próximo ao de países com maior insegurança alimentar como Zimbábue (80%), na África.

O estudo da FGV Social chama de “dramático” o filme da insegurança alimentar brasileira captado entre
2014 e 2021 pela pesquisa. Não é para menos. A proporção de pessoas em famílias com falta de dinheiro para alimentação subiu de 17%, em 2014, quando o Brasil sai do Mapa da Fome da ONU, para 36%, em 2021.

Um salto que, além de significativo, foi desigual, pois impactou ainda mais as mulheres: em 2021, 47% declararam falta de dinheiro para comprar comida (no caso dos homens, o percentual foi de 26%), chamando atenção para a feminização da fome, que tem graves consequências também para as crianças.

A substituição do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial pelo Auxílio Brasil agravou esse cenário, deixando parte da população mais pobre desassistida. Em maio, cerca de 700 mil famílias em situação de extrema pobreza aguardavam na fila de espera do programa.

A piora da situação da fome no Brasil coincidiu ainda com a alta na inflação, principalmente nos preços de alimentos essenciais, que tem provocado uma redução de até 90% no volume de doações de cestas básicas.

O impacto da pandemia na renda familiar foi de fato significativo. Isso afetou também a generosidade do
brasileiro. Segundo o Brasil Giving Report 2021, pesquisa promovida pela britânica Charities Aid Foundation (CAF) e pelo Idis, a prática de doação para organizações da sociedade civil caiu de 53% para 49% em um ano.

Para enfrentar esse cenário, que vem deixando muitas famílias desamparadas, organizações da sociedade civil, empresas e inciativas voluntárias têm se unido para colocar comida na mesa do brasileiro.

Em Campinas, a terceira edição da campanha emergencial Mobiliza Campinas – uma iniciativa da Fundação FEAC – envolve mais de 100 organizações da sociedade civil.

Criado em 2020, o Mobiliza Campinas distribui cartões alimentação para que as famílias empreguem os
recursos nos produtos que mais necessitam. Nas duas primeiras edições foram contempladas 13.201 famílias, com 93% dos cartões emitidos em nome de mulheres, representando um total de R$ 9,5 milhões. Ao todo, 84 empresas e mais de 3 mil pessoas físicas contribuíram para ajudar 53,7 mil pessoas. Ao optar por cartões e não por doações em produto, a campanha também empodera as famílias, que podem escolher o que comprar com base nas suas necessidades de momento, e fortalece o comércio local.

Os efeitos da pandemia de covid-19 ainda estão longe de acabar. Os exemplos de Campinas e de tantas outras cidades brasileiras mostram, no entanto, que juntos, somos mais fortes.

*Jair Resende atua há mais de 30 anos no terceiro setor e tem experiência em ONG, institutos empresariais e fundações. É mestre em Economia do Desenvolvimento pela Università degli Studi di Milano e acumula experiências de trabalho no Brasil, na América Latina e na África. Atualmente é superintendente Socioeducativo na Fundação FEAC.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, em 30/07/2022.