Por Frederico Kling
Segundo o Monitor das Doações, ferramenta da Associação Brasileira de Captadores de Recursos que acompanha a mobilização de recursos em torno da pandemia, foram doados, entre 31 de março de 2020 e 31 de março de 2021, mais de R$ 6,5 bilhões. Desse total, mais de R$ 5 bilhões foram destinados entre 31 de março e 31 de maio de 2020.
Os dados mostram que os brasileiros deram uma resposta à altura da urgência trazida pela pandemia. Mas, agora, que ela está em seu momento mais grave e em que o terceiro setor mais precisa de apoio, o ritmo de doações diminuiu vertiginosamente.
Por que houve esse boom inicial de mobilização? O que levou a sua diminuição? Como fazer a captação de recursos voltar a patamares que estejam à altura dos desafios socioeconômicos do país? Qual é o cenário para o pós-pandemia e qual o papel que as OSC terão nele?
Para responder a essas questões, dentre outras, a Fundação FEAC conversou com o consultor Marcio Schiavo, CEO da Comunicarte. Especialista em marketing social, ele tem mais de 30 anos de experiência atuando em campanhas sociais. Foi vice-presidente do conselho diretor da Andi; representa, no Brasil, a Population Media Center, ONG norte-americana que utiliza a mídia de massa para tratar de direitos humanos. Entre outras atividades, Marcio foi responsável por um trabalho de inserção de temáticas sociais na Rede Globo, entre 1996 e 2005.
Fundação FEAC – No começo da pandemia, houve um boom de doações para projetos relacionados à Covid-19. Por que isso aconteceu?
Marcio Schiavo – A solidariedade é uma característica do brasileiro. Claro que há os mobilizadores, pessoas que estão na linha de frente e que tem a capacidade de sensibilizar e trazer um volume mais significativo de gente para uma causa. E não precisa convencer ninguém de que há uma emergência em relação à fome no país, as pessoas sabem. Ao deixar isso claro e mostrar o caminho, a mobilização acontece.
FEAC – E o que explica a posterior queda de doações e a aparente desmobilização social?
Schiavo – Isso é normal. A curva de doações sobe; depois, há um platô; então, desce e, eventualmente, há nova subida. Quando marcamos essa conversa [meio de março], as doações estavam em declínio. Agora, já estão voltando a crescer. Há alguns fatores relacionados a isso. Inicialmente, existe um cansaço, a sensação de que se está enxugando gelo. Veja a mobilização de pessoas que o Betinho fez na campanha contra a fome (na década de 1990), em torno de uma questão permanente. Houve evolução, mas a situação permaneceu. Depois, há uma anestesia social. Por exemplo, no Rio de Janeiro e em São Paulo, bem como em outras grandes cidades do mundo, se naturalizou a existência da população de rua. Criou-se uma espécie de naturalidade perversa. A situação de miséria em comunidades mais pobres, de forma geral, é permanente, não nasceu com a pandemia, que apenas faz com que seja mais notada.
A situação de miséria em comunidades mais pobres, de forma geral, é permanente, não nasceu com a pandemia, que apenas faz com que seja mais notada.
FEAC – Já havia, desde pelo menos 2015, um agravamento da situação socioeconômica no país. É possível que essa tendência de longo prazo tenha ajudado na letargia atual?
Schiavo – Provavelmente, isso ocorreu. É como se fosse um cansaço. As pessoas olham os dados e veem que está pior do que quando fez sua ação. Critica-se o assistencialismo, mas ele é importante ao assistido. Nós estamos cansados da pandemia, de ver um noticiário que se repete exaustivamente. Há desesperança. Depois de quase um ano isolados, a receita é continuar isolado. A percepção das pessoas é de que coisas não mudaram, apesar dos sacrifícios. Isso ocorre também nessas ações sociais. As pessoas também estão sofrendo mais na sua capacidade de doar, a sobra de recursos diminuiu, elas estão mais apertadas.
FEAC – Por que as doações estão voltando agora e como manter isso?
Schiavo – Alguns fatos são relevantes. Chegar a 300 mil mortos é um sino que toca na consciência das pessoas. A proximidade com as vítimas, também. A sociedade percebe que a solução não é individual, depende de um esforço coletivo. As pessoas precisam se sentir agentes da mudança. Os três setores – governo, empresas e ONGs – precisam estar juntos.
Chegar a 300 mil mortos é um sino que toca na consciência das pessoas. A proximidade com as vítimas, também.
FEAC – Qual o papel da comunicação na mobilização social em torno dos efeitos socioeconômicos da pandemia?
Schiavo – Há várias formas de definir comunicação. Comunicar é eliminar diferenças e distâncias. Essa é a que eu prefiro. Trazer uma situação para o universo de conhecimento daquela pessoa, mesmo que seja por meios mais chocantes. A questão da estética e da ética do comunicador entra nesse momento, mas é necessário trazer para perto das pessoas aquilo que elas normalmente não estão enxergando e vivenciando. Não faz parte da realidade da classe média para cima falar sobre fome. É preciso ver a fome. É chocante ver uma pessoa fuçando no lixo para ter o que comer. Isso não é apelativo. A situação é apelativa, mostrá-la, não é. Trata-se de uma situação real. O problema não é comunicação, é o que está acontecendo. Para convocar as pessoas, é preciso mostrar o que está acontecendo. Isso leva muitas vezes a uma ação concreta. Essa gangorra das doações pode variar na medida em que mais pessoas são expostas ao problema.
Para convocar as pessoas, é preciso mostrar o que está acontecendo. Isso leva muitas vezes a uma ação concreta.
FEAC – Como você vê o mundo pós–pandemia e qual o papel que o terceiro setor vai ter nele?
Schiavo – Não adianta apenas eu me livrar de uma situação que envolva todo um conjunto de comunidades. Creio que essa consciência vai prevalecer no pós-pandemia de uma maneira mais evidente. As pessoas já estão compreendendo isso. Não sou um apologista do caos. Comecei a trabalhar na década de 1970, no Nordeste. Chegávamos em lugares em que a mortalidade infantil era de 250 [mortes] para mil [nascimentos]. Hoje é de 15 [mortes] para mil [nascimentos]. As pessoas não têm consciência do significado disso de uma maneira geral. Houve conquistas, e o terceiro setor é que faz muita coisa avançar, o governo é mais lento. Teremos, no futuro, uma sociedade melhor, sem nenhuma dúvida.