Uma horta comunitária plantada em dezoito estruturas diferentes, dentre vasos, caixotes de plástico e de madeira pode ser encontrada em uma unidade descentralizada do Centro de Referência da Assistência Social (Cras) da comunidade São Judas, em Campinas. As plantas são diversas e podem ser usadas para chás, como hortelã e capim-limão, para temperos, como cebolinha e salsinha, e para acompanhar as refeições, como beterraba e quiabo. Esse é um dos resultados do projeto Agricultura Urbana, da Fundação FEAC em parceria com o negócio de impacto Pé de Feijão, que teve início em agosto de 2021.
“É maravilhoso mexer com a terra. Na hora da colheita, fico muito feliz de saber que fui eu que plantei, junto com minhas amigas, e agora a gente está colhendo”, declara Maria Marinho, moradora do bairro São Judas. Dona Maria, como é conhecida, faz parte de um grupo de mulheres bordadeiras e essa é a sua primeira experiência plantando sua própria comida.
O projeto promove o cultivo agrícola em dois territórios vulneráveis de Campinas – São Judas e comunidade Menino Chorão, no Campo Belo –, a partir de técnicas da agricultura urbana. O objetivo é proporcionar confiança para os moradores começarem a plantar seus próprios alimentos e, assim, ajudar a combater a insegurança alimentar e nutricional agravada pela pandemia de Covid-19.
“A agricultura urbana é um apoio para a segurança alimentar, uma vez que as pessoas podem produzir dentro de casa, no recipiente que possuem”, explica Luisa Haddad, bióloga e cofundadora do Pé de Feijão. Na primeira fase, o projeto focou em estimular o plantio em casa. Os grupos participaram de oficinas quinzenais sobre temas como: horta doméstica, compostagem doméstica, chás medicinais e aproveitamento integral dos alimentos.
Na oficina de horta doméstica, os participantes montaram um vaso de erva ou tempero, aprendendo o passo a passo e os cuidados. No final, todos receberam vasos e mudas para seguirem com o plantio.
Luisa explica que o principal objetivo dessa etapa foi estimular a confiança dos moradores na sua capacidade de execução. “Se você praticar, pode começar a ser autossuficiente em parte dos temperos e alguns vegetais, como beterraba, rabanete e tomate”, explica a bióloga, com exemplos do que é possível cultivar em vasinhos.
Já na segunda fase, o projeto expandiu a ação para a implantação de hortas comunitárias, focando no trabalho coletivo. A equipe ensinou todas as etapas de uma produção agrícola orgânica e agroecológica, sem o uso de agrotóxicos. O controle de pragas, por exemplo, pode ser feito com produtos naturais à base de leite ou alho.
A comunidade, então, colocou a mão na massa: somando os dois territórios, 130 m² de horta foram implantadas, com mais de 1.600 mudas e mais de 70 variedades de espécies cultivadas. (Confira o vídeo abaixo)
Agricultura urbana: desafios e benefícios
A agricultura urbana e periurbana se refere ao cultivo de alimentos em áreas urbanizadas e imediações. No Brasil, a prática se caracteriza principalmente por produções agrícolas em pequena e média escala, voltadas para o autoconsumo e comercialização em diferentes mercados, sobretudo locais.
Apenas na região metropolitana de São Paulo, a agricultura urbana tem o potencial de abastecer com verduras e legumes 20 milhões de pessoas anualmente e gerar 180 mil empregos, segundo estudo do Instituto Escolhas, publicado em 2020.
Dentre os entraves para a agricultura urbana, o acesso ao solo é um dos principais, analisa Vitória Leão, mestre em ecologia aplicada e pesquisadora do Instituto Escolhas. Nas cidades, muitas vezes a terra disponível não é de qualidade, pois costuma ser destino de entulho ou corre risco de contaminação.
Outro desafio é a competição pela destinação do solo. “A urbanização cresce e a tendência é que a agricultura se afaste, porque a destinação ‘urbana’ do solo se torna mais rentável”, diz a pesquisadora.
Nos grandes centros urbanos, a agricultura urbana encontra saída em pequenos espaços, como lajes, telhados, quintais de casas, praças e dentro de instituições, como as escolas e os Cras.
Por outro lado, nas zonas periurbanas, essa prática costuma resistir. Dentre os motivos, está a disponibilidade de espaços maiores e a custos menores, que são usados por populações vulneráveis como forma de geração de renda. “Muitas vezes, encontramos prática agrícola nessas áreas porque elas ainda não foram incorporadas completamente pela urbanização. Então, há terrenos maiores para cultivar alimentos”, explica Vitória.
Em épocas de crise, como a pandemia de Covid-19, a pesquisadora avalia que a prática também ganha destaque. Um dos motivos é a busca por mitigar a insegurança alimentar, além de reduzir o circuito da distribuição de alimentos. “Com o distanciamento social, no contexto os primeiros meses da pandemia, muitos produtores que acessam diretamente o consumidor tiveram sua demanda intensificada”, explica.
Aliás, foi nesse contexto que o projeto Agricultura Urbana, do Pé de Feijão, foi idealizado. Durante a pandemia, a equipe viu a necessidade de ir além da doação de alimentos para apoiar as populações mais vulneráveis.
Uma história longa e fértil |
A agricultura urbana não é uma prática nova: a sua história está vinculada à formação de cidades. Mais recentemente, com os processos migratórios da população do campo para as cidades, essa agricultura tende a reproduzir características e costumes da população oriunda de zonas rurais. De toda maneira, é uma prática heterogênea e que assume múltiplas formas de acordo com os diferentes contextos.
Na América Latina, incluindo o Brasil, ganhou destaque a partir dos anos 1990, quando políticas públicas passaram a estimulá-la como estratégia de combate à fome e estudos sobre o tema começaram a ser publicados. “Esse avanço também foi impulsionado por movimentos sociais e ambientais, que olham a produção de alimentos em espaço urbano como uma pauta de cidades mais sustentáveis – seja pelo acesso à alimentação saudável ou pela manutenção de espaços verdes”, explica Vitória Leão. |
São Judas: fortalecimento de laços sociais
Além de apoiar a segurança alimentar, o projeto firmou o compromisso de fortalecer laços comunitários. “Nós usamos a agricultura urbana como uma plataforma de sociabilidade e acolhimento, para que a comunidade pudesse se fortalecer a partir da prática agrícola”, explica Marcelo Patarro, líder do Programa Desenvolvimento Territorial, da FEAC.
No caso do São Judas, quando a equipe do Pé de Feijão chegou ao território, conheceu um grupo de 12 mulheres bordadeiras, o Grupo de Mulheres Bordadeiras Fazendo Arte, que se reúnem no Cras. A fim de respeitar e potencializar grupos já mobilizados, a equipe as convidou para participar do projeto.
As mulheres bordadeiras abraçaram o projeto: elas se engajaram na manutenção da horta implantada no Cras, dos plantios à colheita. O que é colhido é distribuído entre elas para o autoconsumo.
Como a unidade do Cras só abre três dias por semana, foi instalado um sistema de irrigação por gotejamento. “Nunca precisamos ligar, porque elas tiveram a iniciativa de conversar com os funcionários do Cras e pegar a chave. Elas regam a horta de domingo a domingo”, conta Luisa, do Pé de Feijão. Agora, elas estão se mobilizando para ampliar a horta por conta própria (veja galeria de fotos abaixo).
[ngg src=”galleries” ids=”1″ display=”basic_thumbnail” thumbnail_crop=”0″ maximum_entity_count=”500″]Além da horta comunitária do Cras, o projeto buscou um espaço de terra para cultivar alimentos de maior sustância. “O cultivo doméstico ajuda, mas para plantar espécies que realmente vão trazer segurança alimentar é preciso de solo, que é um grande gargalo na agricultura urbana”, reforça Luisa.
A solução foi encontrada: Seu Joaquim, um antigo morador do bairro, possui um terreno que coloca à serviço da comunidade. Ele cedeu o espaço para o projeto, que implantou uma horta no local.
Ali, foram plantadas espécies como mandioca, milho, batata doce e feijão. Todo o processo também foi conduzido pelo grupo das mulheres bordadeiras, que agora possui autonomia para seguir cuidando da horta.
“A gente desce todo dia na horta do Seu Joaquim para ver o que está brotando… os milhos e as mandiocas já estão nascendo. Eu chamo todo o pessoal [da comunidade] para ajudar a tirar os matos”, anima-se Maria Marinho, integrante das mulheres bordadeiras.
Menino Chorão: novas formas de geração de renda
O projeto também foi realizado na comunidade Menino Chorão. Diferentemente do São Judas, onde as hortas foram implantadas do zero, esse território já contava com uma horta pré-existente e o início de uma agrofloresta, localizada em um terreno conhecido por ser da Carmen Souza, líder comunitária e ativista dos direitos das mulheres do território.
Apesar de existir terra para plantar, não havia um grupo estruturado. A equipe do Pé de Feijão, junto com a Carmen, bateu de porta em porta chamando os moradores para participarem do projeto.
Elas conseguiram reunir um grupo de cerca de 12 pessoas, que possui alta rotatividade, mas predomina a participação de mulheres. “Eu abracei esse projeto como uma ferramenta para ajudar outras mulheres a se empoderarem”, diz Carmen. (Veja galeria de fotos abaixo.)
[ngg src=”galleries” ids=”2″ display=”basic_thumbnail” thumbnail_crop=”0″]Na área da Carmen, o grupo potencializou uma horta de 70m², que conta com plantios diversos, como abobrinha, batata-doce, berinjela, beterraba, alface, entre outros. Também foi implantado um sistema automático de irrigação.
“A horta é grande e não possuía nenhuma irrigação, então só conseguia produzir em época de chuva. O projeto resolveu esse problema”, destaca Luisa, do Pé de Feijão.
O tamanho da horta possibilita não apenas o autoconsumo do grupo, mas também a comercialização dos alimentos. Pensando nisso, o projeto levou oficinas de pães utilizando alimentos plantados na horta, como batata doce e abóbora.
O Agricultura Urbana encerrou em dezembro de 2021, mas agora o grupo local segue com autonomia para passar os conhecimentos adiante. A previsão é que no primeiro semestre de 2022 a colheita da horta aconteça e os produtos comecem a ser comercializados na própria comunidade Menino Chorão.
“O conhecimento do cultivo e do beneficiamento dos produtos empodera essas mulheres e mostra um caminho de geração de renda que nem sempre é óbvio”, conclui Luisa.