Projeto Reciclista transforma peças que seriam descartadas em produtos de qualidade e valor ambiental
(Por Ingrid Vogl)
Elas viram oportunidade onde a maioria das pessoas não vê e, a partir disso, estão se tornando empreendedoras de um negócio sustentável. Essa é a história de Lindineide da Silva, Madalena Correa e Renata Dias, que há dois anos criaram o projeto Reciclista, uma marca de upcycling, ou reutilização criativa com valor agregado, que transforma uniformes e malotes dos Correios que seriam incinerados, em bolsas e acessórios para a mobilidade e o pedal urbano de muito bom gosto. São produtos que falam por si, que contam a sua história e oferecem um consumo alinhado com as tendências mundiais de cuidados com o planeta.
O sonho empreendedor das mulheres que estão transformando suas vidas e querem transformar a comunidade onde vivem começou há oito anos, quando Lindineide, Madalena e Renata se mudaram para o Jardim Bassoli, empreendimento do Minha Casa, Minha Vida onde vivem 2.380 famílias e cerca de 8 mil moradores que foram retirados de áreas de risco de Campinas.
“Antes de vir pra cá eu tinha uma oficina de costura, mas quando me mudei não tive mais vontade de costurar, estava desmotivada e sem ânimo de sair de casa. Eu e a Madalena fomos eleitas síndicas do condomínio e foi aí que nos conhecemos. Mas nas reuniões só surgiam problemas estruturais dos prédios que tinham sido entregues recentemente. As pessoas só viam problemas e faziam críticas”, lembrou Renata.
Com as mudanças de tantas famílias que deixaram laços afetivos para trás, o empreendimento do governo federal disponibilizou uma equipe multidisciplinar de profissionais para apoiar a transição dos novos moradores, como psicólogo e assistente social. Foi aí que a Casa das Oficinas propôs um projeto social de artesanato no bairro. Nomeado de Artes Bassoli, Madalena e Renata começaram a abrir o salão de festa do condomínio todas as quartas-feiras para fazer artesanato. Eram capas de notebook, de celular, panos de prato e outros produtos confeccionados pelo grupo de mulheres, que também atraiu Lindineide. Mas após dois anos, a frequência dos encontros foi diminuindo, e as reuniões no salão de festas acabaram.
As três artesãs, já unidas pelo mesmo interesse e potencial artístico, sempre quiseram continuar com o Artes Bassoli, e essa oportunidade aconteceu quando o projeto recebeu R$8 mil por meio de um edital da Escola de Transformação do Instituto Elos, que usa um método que visa aproximar e atender as necessidades locais, reconhecendo de forma afetiva o potencial de cada pessoa da comunidade, permitindo assim construir elos para a criação de espaços de conexão e ação.
Reciclista
A criação do Reciclista aconteceu a partir de um telefonema que Viviane Nale, líder de programa da Fundação FEAC, deu para o trio de mulheres. Na ligação, ela ofereceu a oportunidade delas trabalharem os uniformes e malotes dos Correios, que normalmente seriam destruídos. A partir daí, os planos das três mulheres mudaram.
“Nos enviaram uma sacola com uma camisa, uma calça, um malote, para ver o que poderíamos fazer com aquilo. Quando recebemos as primeiras peças, foi uma piração, porque não tínhamos nenhuma noção do que fazer com aquilo, tudo cheio de graxa. Éramos acostumadas a cortar pano e desenhar e costurar galinhas, corujas para panos de prato bonitinhos. E a pergunta que ficou na cabeça de todas foi: o que vamos fazer com essas peças de roupas velhas e sujas?!??!?!”, relembrou Madalena.
Foi com a ajuda de Renata Mendes, que hoje é a coordenadora do projeto Reciclista, e de outros profissionais que faziam parte da Escola de Transformação, que o trio começou a pensar em possibilidades de transformação para as peças. Depois de muita conversa, debate e pesquisa, chegou-se à conclusão de que o desafio seria criar acessórios para bicicletas e ciclistas urbanos. “Fizemos e refizemos as primeiras peças inúmeras vezes, mas quando vimos os protótipos, ficamos felizes, porque percebemos que as peças tinham potencial, porque eram resistentes, bonitas, sustentáveis e poderiam ser valorizadas no mercado”, disse Renata Dias.
Foi aí que elas buscaram as primeiras 278 peças, que foram trabalhadas na Casa de Cultura do Parque Itajaí, local onde primeiramente instalaram as máquinas para trabalharem juntas. Com os R$ 8 mil recebidos do edital da Escola de Transformação, elas investiram na compra de máquinas de costura industriais para as roupas dos Correios.
EBC
O Reciclista deu outro passo importante quando Renata Mendes inscreveu o projeto no Empreendedorismo de Base Comunitária (EBC), iniciativa da Fundação FEAC que apoia – por meio de recursos financeiros e orientações estratégicas – iniciativas que resultem em qualidade de vida e bem-estar social e estimulem o exercício de atuação coletiva para a transformação do território. A iniciativa do trio foi selecionada e foi uma grata surpresa.
A partir daí, o Reciclista teve orientação e formação sobre como empreender o negócio. “Tivemos ajuda de profissionais que nos ensinaram como precificar os produtos, fazer moldes, definir qual o público consumidor, como divulgar e até fazer as fotos para as redes sociais”, enumerou Renata Dias. Todo esse processo de estudo e planejamento de como empreender, levou cerca de dois anos, e só recentemente o Reciclista passou a vender, de fato, seus produtos em feiras e eventos para os quais são convidadas. “Durante dois anos fizemos essa preparação estratégica do empreendimento, pensando nas etapas. Estamos caminhando e amadurecendo nosso processo; só o lucro financeiro não é tão importante quanto a gente criar forças agora e mais pra frente, a gente estar bem estruturadas para nosso negócio”, completou.
Rumo ao sustentável
Todo o processo desde que as peças chegam, até serem transformadas em produtos para a venda, é longo, trabalhoso e minucioso. As peças chegam de caminhão e ficam na estação Cultura, no Centro da Cidade, cerca de 27 quilômetros distante do Jardim Bassoli. Após o transporte para o apartamento que fica no condomínio L, onde o Reciclista está instalado atualmente, as peças são lavadas, tem os logos da empresa retirados e passam por uma seleção e pela separação dos tipos: calças, camisetas, malotes, capas de chuva.
As costas da camiseta viram bolsas amarelas, capas de chuva são transformadas em ecobags e pochetes e a calça, um alforje (bolsa dupla para bicicleta). Cós, botões, bolso, tudo é aproveitado. Sobras de camiseta são usadas para fazer crochê, retalhos de calça viram tapete e necessaires e o que está manchado ou furado, enchimento de almofadas. “Começamos a ter mais ideias para aprimorar as peças e estamos procurando aproveitar cem por cento de tudo. Cada produto é único e tem a sua história”, disse Renata.
“A experiência com o EBC nos fez entender o Reciclista, de onde ele vem e como é importante para gente e para o meio ambiente, porque estamos transformando algo que iria poluir em peças usáveis. Me orgulho de participar disso”, afirmou Lindinalva.
Para Madalena, o apoio do EBC revelou muita coisa boa. “Com tudo isso descobri que sou capaz de fazer muita coisa que eu não imaginava que faria. Até aqui, foram muitas experiências boas, uma escola de aprendizagem. A gente sofre, ri e temos que continuar porque queremos coisas melhores pra gente”, ressaltou Madalena.
“Nunca imaginei que seria uma empreendedora. Estou me sentindo muito honrada de ter tantas pessoas qualificadas e especiais nos ajudando, em vários sentidos. É uma coisa tão transformadora que estou flutuando”, contou Renata Dias.
Em busca dos sonhos
No caminho para conseguirem a autonomia de seu negócio, que por enquanto gera renda para pagar as despesas com os materiais necessários para a criação dos produtos, Lindineide, Madalena e Renata têm sonhos futuros. “Nossa vontade é construir um galpão para agregar o Artes Bassoli, que está adormecido, e o Reciclista e assim interagir com toda comunidade. Fazer rodas de conversa, escutar as pessoas e dizer a elas que não precisam ficar trancadas no apartamento, que têm valor e podem se redescobrir e enxergar novas possibilidades. A gente quer que elas possam enxergar possibilidades positivas e gostem de morar aqui como a gente gosta”, disse Renata.
Oferecer oficinas de capacitação para os moradores do bairro também está nos planos do trio. “Muitas famílias estão precisando de projetos para que a vida delas melhorem também. Eles (moradores) ainda não enxergam como nós três, que agarramos nossa oportunidade e estamos lutando por isso, pelo nosso sonho, mas um dia eles vão entender. Sonhamos em ter muitas mulheres costurando com a gente, e juntas vamos chegar a produzir mil peças por mês”, planejou Lindineide.
“A gente acredita na nossa capacidade. Somos corajosas, engajadas e piradinhas. Vamos fazer acontecer nem que seja debaixo da ponte. A gente não para”, brincou Madalena. E com gratidão por todos que sempre apoiaram o Reciclista, Lindineide, Madalena e Renata estão certas de que querem retribuir todas as oportunidades que tiveram para a comunidade onde vivem.
Saiba mais: https://www.feac.org.br/empreendedorismo-de-base-comunitaria/
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