por Ariany Ferraz

Unir o direito, serviço social, terapia ocupacional, psicologia, pedagogia, ciências sociais, artes, entre outras áreas para ressignificar a vida de jovens. Esse é a missão do Comec (Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas), que há 38 anos trabalha com adolescentes em conflito com a lei em busca da reparação da prática do ato infracional por meio de medidas socioeducativas de meio aberto.

É com o protagonismo juvenil que o Comec realiza dois trabalhos, a Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), com 280 jovens na faixa etária entre 12 e 18 anos. As medidas, de caráter educativo, estão previstas no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), aplicadas pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude, a depender das circunstâncias e gravidade da infração, que pode se estender até os 21 anos incompletos, como também prevê o Estatuto.

Todo atendimento é realizado com base no Plano Individual de Atendimento (PIA), que além de planejar, também registra e gere as atividades a serem desenvolvidas com cada adolescente. As duas medidas visam trabalhar a cidadania e desenvolvimento do jovem, porém com objetivos e especificidades diferentes. O serviço conta com a dedicação da equipe multidisciplinar, mas um trabalho em rede com serviços de educação, saúde, habitação, cultura e da própria assistência social também dá suporte. Marili Foltran, Coordenadora Geral, explica que muitas vezes o jovem também pode ser encaminhado para outro serviço da comunidade, a depender de suas necessidades, como um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), por exemplo.

A Prestação de Serviços propõe um processo coletivo de trabalho e tem 100 atendidos. “Ela prevê que o adolescente devolva para a comunidade um serviço, como um meio de responsabilização”, sinaliza Juliana Vedovello, terapeuta ocupacional e coordenadora do PSC no Comec. Ela aponta que geralmente são recebidos os mais jovens, que tiveram as primeiras ocorrências e são infrações consideradas mais leves. Com duração de seis meses em média, conta com um orientador de medida e educador social que, a partir da região de moradia do adolescente, constroem grupos que atuam no território. A definição de qual serviço será desenvolvido é uma construção com o grupo e a equipe do Comec busca identificar os locais para a prestação acontecer.

“Vamos provocar que esse adolescente traga referências do território dele. Pode ser escolhido um centro de saúde, por exemplo, eles podem organizar caixas com brinquedos para a sessão de pediatria utilizando materiais reciclados e acabam revitalizando o espaço também. A gente acessa o serviço, que aponta as demandas e as possibilidades de atuação. Então o grupo planeja e executa. Vamos investindo para que todas as etapas sejam ampliadas, não é só ir no centro de saúde, é reconhecer a importância daquele serviço para a comunidade”, esclarece Juliana.

Já na Liberdade Assistida, que atende cerca de 180 pessoas, a proposta é de um olhar mais individualizado.”Geralmente o adolescente chega com outras demandas e sempre olhamos na singularidade deste jovem. Ele traz questões próprias e o técnico de referência vai vendo junto com ele quais são as necessidades”, aponta Marili.

Ela explica que neste caso é indicado um tempo maior para trabalhar com o jovem para que supere a infração e a LA está preparada inclusive para receber pessoas com outros comprometimentos, como saúde mental, por exemplo. No atendimento com o orientador de medida, que pode ser um psicólogo, assistente social ou terapeuta ocupacional, existe a orientação e supervisão de caso para melhor acompanhamento e desenvolvimento do jovem. Juliana acrescenta que, em menor número, existe a medida acumulada, que combina a PSC e LA, onde o adolescente participa dos dois programas concomitantemente, a depender do ato infracional e do que o juiz determinar.

Garantia de direitos e combate às violências

“A gente vê o fenômeno da violência em suas diversas formas”, afirma Juliana Vedovello. A maioria dos jovens está inserida em contextos de vulnerabilidade social e de violências. Essa realidade e um conjunto de fatores correlacionados influenciam na prática do ato infracional. As crianças e adolescentes enfrentam uma série de violações de direitos ao longo da vida. Ela cita que quando uma mãe não leva um filho para vacinar ou quando retarda a entrada dele na escola, são exemplos comuns de violações de direitos básicos.

“Eles geralmente moram em periferia. Tem a questão do abandono dos pais, pois não têm um vínculo saudável, uma qualidade na relação. São muitas vezes adolescentes que tiveram uma privação na sua infância, que já sofreram violência doméstica, psicológica e/ou sexual… As motivações são inúmeras, desde a desestrutura familiar, a falta de organização, o lugar que compõem no bairro, entre outras. Os históricos são muito similares”, revela Marili.

A coordenadora explica que estar na fase da adolescência também é uma particularidade expressiva, pois é momento de  rebeldia e do embate, e a falta de escuta familiar e de suporte social potencializam as dificuldades enfrentadas por esses jovens. “A LA, por exemplo, vai permeando todas essas demandas do jovem, tudo que ele vai trazendo das vivências, das situações de violência, ausências e conflitos”, cita Juliana.  Desta forma, o Comec cria espaços de escuta, de acolhimento, de reestabelecimento de vínculos familiares e comunitários, e as atividades agem também como forma de combater as violências sofridas pelos adolescentes.

Com apoio institucional pelo Programa Enfrentamento a Violências da Fundação FEAC, o Comec busca garantir a proteção e os direitos dos adolescentes. “Esses jovens são estigmatizados, mas na verdade são vítimas de uma realidade repleta de violações de direitos, portanto o trabalho desenvolvido pelo COMEC busca a garantia e fortalecimento destes direitos, retomando por vezes os vínculos familiares e comunitários, fragilizados ou rompidos na ocasião da infração, promovendo ainda estratégias junto a esses jovens de reconhecer suas potencialidades e possibilidades de um projeto de vida que promova a transformação de sua realidade”, revelou Natália Valente, técnica de referência do Programa.

“Tem realmente a questão do estigma. Eles chegam aqui com um rótulo, até pela família, de aspectos só negativos, como se não tivessem potencialidades. O jovem também vem imbuído desse sentimento de que ele não consegue fazer mais nada. Tem muita coisa que pode ser valorizada e nosso trabalho socioeducativo prevê isso, ajudá-los a reconhecerem habilidades, para que a família também consiga ter esperança. Eles precisam ser fortalecidos!”, contou Juliana.

Por isso, a família é considerada uma parceira importante, que além da entrevista domiciliar recebe também um atendimento e acompanhamento para que possa cooperar e auxiliar o adolescente. Assim, é feito um estudo psicossocial do grupo familiar para identificar demandas e elaborar estratégias resolutivas. “Os progressos são muitos, vão desde o reconhecimento da família em relação às fragilidades, a melhoria no diálogo, o fortalecimento de vínculos com a família”, elencou a coordenadora do PSC.

“As coisas não são bem da forma que a gente pensa. Já estou mudando um pouco meu jeito de ser e

melhorando. Até minha mãe gosta mais de mim, meu filho e mulher… está melhor em casa já”, afirmou o jovem Luiz*. “Abriu meus olhos! Eu poderia estar pior hoje se não fosse o Comec. Tenho esperança de sair daqui com outra mente, completamente mudado, no meu ponto de vista e minhas atitudes”, avalia também o menino Cristiano*.

Criatividade, aprendizado e desenvolvimento

Quem entra nas unidades do Comec se encanta com as cores e criatividade em todos os espaços, grafite nas paredes, decoração de móveis, tudo fruto das atividades dos jovens. Para vincular o adolescente na atividade e propiciar vivências iniciais, são trabalhados temas transversais em oficinas diversas nos eixos de esportes, expressão artística e cultural, inclusão social e digital, saúde e qualidade de vida.

“Hoje eu vejo o que fiz, que prejudicou minha família e estou abrindo os olhos. Eu quero mudar de vida. Eu quero ser um cara mais responsável. O Comec e eu fazemos parte dessa mudança. Aqui trabalhamos todos juntos”, enfatizou Júlio*. Ele conta que foi recebido com carinho e hoje está mais tranquilo, agindo de forma mais respeitosa e que se sente bem em ajudar o próximo trabalhando na PSC.

Tanto as atividades individuais como em grupo contribuem para o desenvolvimento de cada um, ao compartilharem vivências, cooperarem e se sentirem valorizados. Na LA ou na PSC, os jovens participam de grupos de atividades, dentro de um repertório de interesses, como grafitagem, música e culinária, por exemplo, que trabalham as aptidões e construção de autonomia, viabilizando novos caminhos para alcançar a mudança de lugar social do adolescente. Na PSC, além da socialização, o jovem se relaciona com o território de forma a exercer um novo papel na comunidade gerando pertencimento e fazendo-o se perceber como cidadão de direitos e deveres, por meio de ações de responsabilidade e protagonismo.

Além das violências, a falta de oportunidades é outra realidade marcante, por isso as equipes procuram trabalhar a questão escolar, destacando o potencial e tentando despertar o interesse pela escola. “Inclusive nos grupos há uma semelhança entre eles de não querer ir na escola. E porque? Por que a escola também não é um lugar que compreende esse adolescente, às vezes é só um lugar de embate, de exigência, de autoridade”, aponta Marili. Por isso, é preciso também ressignificar a escola. Juliana aponta que o esforço vai além da matrícula e da manutenção do jovem e de sua frequência.

O trabalho é outra questão considerada importante para muito jovens, como aponta Juliana. O Comec trabalha parcerias para a inclusão na Aprendizagem Profissional. Ela conta que a mecânica, por exemplo, foi um dos interesses identificados entre os meninos e, por isso, por meio de um projeto, foi realizado um curso profissionalizante em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Escola do Mecânico, via Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).”Tivemos dois casos recentes que foram incluídos. É um avanço!”, disse Juliana.

O Comec

Uma Organização não Governamental, de utilidade pública e sem fins lucrativos criada em 1980, atua dentro da política pública de assistência social em cogestão através do Creas (Centro de Referência Especial de Assistência Social), que reúne as vagas. O trabalho é alinhado com ECA, SUAS (Sistema Único da Assistência Social) e SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo).

Este ano o Comec lançou o livro “Uma trajetória de trabalho com adolescentes” que conta toda a história da entidade e explica detalhadamente como funcionam os serviços em sua complexidade. Para saber mais acesse: www.comec.org.br

Programa Enfrentamento a Violências

Uma iniciativa da Fundação FEAC que investe na mitigação dos impactos das violências e no enfrentamento para romper os ciclos que as perpetuam com objetivo de promover o bem-estar e a cultura de respeito, empatia, tolerância e paz.

* nomes fictícios