Musical estrelado por mais de 150 usuários de nove instituições sociais fecha com beleza e sensibilidade o trabalho desenvolvido pela FEAC em 2018
(Por Ingrid Vogl)
O palco do Teatro Iguatemi Campinas se transformou em um mundo mágico, emocionante e cheio de surpresas nas noites dos dias 17 e 18 de dezembro, quando 156 pessoas de 10 a 83 anos, atendidas por nove Organizações da Sociedade Civil (OSC), encenaram o musical “Alice no País das Maravilhas”, iniciativa do projeto Arte e Cultura da Fundação FEAC.
Durante cerca de duas horas de espetáculo, quem esteve por lá se emocionou com os divertidos gatos de Cheshire, a duquesa que fala muito e não diz nada, o chapeleiro maluco, coelhos sempre atrasados, a implacável Rainha de Copas e, é claro, as sonhadoras Alices, que eram muitas, todas normalmente diferentes. Extrapolando o palco, o musical tomou todo o teatro, com cenas que aconteciam nos corredores e que surpreendiam os espectadores. Foi emoção do começo ao fim, posso garantir.
Muito antes do início do musical, marcado para as 20h, os artistas chegaram ao teatro para o último ensaio. Nos bastidores, o movimento nos camarins era intenso e a alegria e excitação dos participantes era nítida e gostosa de ser sentida. Maximina Batara Domingues, 74 anos, não cabia em si desfilando com um elegante e reluzente vestido longo amarelo, já pronta para interpretar uma das Alices no palco. Ao lado do marido Roque Domingues, 83 anos, homem de poucas palavras, mas muitos sorrisos, que interpretou uma das lagartas, a atuação do casal era comemorada junto com o aniversário de 58 anos de casamento completados no dia 13 de dezembro.
“Essa experiência é boa demais. É uma felicidade imensa passar por essa transformação, que me faz sentir jovem e capaz de aprender e realizar muitas coisas. No início dos ensaios achei que seria muito difícil, mas hoje estou aqui, pronta para interpretar a Alice com muita confiança e energia”, disse a artista, que no primeiro dia de espetáculo dormiu cerca de 4h e nem se lembrava do que era cansaço. No palco, ela fez bonito e empoderada e segura de seu papel junto com seu grupo, garantiu um dos momentos mais emocionantes do espetáculo, quando Alice se encontra com as lagartas que se transformam em borboletas.
Pouco antes das portas do teatro se abrirem para o público, encontrei Hugo Roberto dos Santos de Oliveira, 12 anos, e Lucas Nascimento de Carvalho, 11, discutindo pelos corredores as muitas cenas em que interpretavam os gatos. Quando perguntei se estavam empolgados com o musical, a resposta veio em forma de lindos sorrisos que dispensavam qualquer fala. “Estou empolgado e ansioso. Ensaiar foi cansativo, mas tudo vale a pena”, disse Lucas. “Tenho confiança de que vou fazer um belo show”, complementou Hugo, saindo correndo logo em seguida para se maquiar.
Voluntários engajados
E por falar em maquiagem, a equipe de voluntários responsável por essa importante parte do espetáculo fez bonito e atuou de maneira criativa e cheia de talento. Os rostos pintados complementavam os figurinos simples e originais.
A publicitária e estudante de psicologia Júlia Zaneti pintou os rostos de Alices, lagartas, gatos e outros personagens sem tirar o semblante de satisfação do rosto. “Cheguei até o espetáculo pelo Motiva (projeto da FEAC que prepara e orienta pessoas interessadas em atuar com voluntariado). E como gosto de desenhar e fazer maquiagem, me identifiquei com o trabalho. Nunca tinha tido essa experiência de maquiagem para o teatro e está sendo muito legal ver tudo isso acontecer. Ao interagir com os artistas de todas as idades, a gente sai daqui com outra cabeça”, disse.
Na turma da equipe responsável pela lateral de palco, o empresário Rodrigo Copelli Frizzi estava tão à vontade em sua função que passava a impressão de que fazia parte da equipe técnica do espetáculo desde o início dos ensaios. Inspirado pelo Motiva e pelo vício que diz ter em participar constantemente de ações sociais, o voluntário chegou a desmarcar uma viagem para Fortaleza (CE) para participar do último ensaio geral, que aconteceu no dia 12 de dezembro.
“Cada trabalho voluntário é uma experiência nova, um sentimento diferente, como se fosse a primeira vez. E isso é muito bom, porque me encanta. Esses momentos com crianças, jovens e idosos são muito especiais e o que sinto hoje aqui no ar é um clima de amor. Eles transmitem uma energia muito boa, se encantam com as próprias atitudes, se orgulham deles mesmos, mostram nervosismo e a gente acompanha e se envolve. Os participantes falam com a gente como se já nos conhecessem e tem respeito nas relações. É um clima muito gostoso”, relatou.
Rodrigo descreveu muito bem o clima dos bastidores, porque a todo momento era possível perceber rostos focados, autoconfiantes, de entusiasmo, ansiosos, atos de companheirismo, solidariedade e união que facilmente eram flagrados. Inclusive entre os educadores que acompanharam toda a jornada de ensaios até os dias de apresentação.
“O coração está disparado no meio desse movimento e de tanta ansiedade, mas com muita felicidade. Porque chegou o momento deles aparecerem no espetáculo e de ver alegria e vontade de estar no palco, de ver o figurino, o cenário e prontos para encarar o desafio. A melhor coisa é ver a autoestima escancarada de cada um. É muito emocionante”, contou Cintia Fagiani de Oliveira, pedagoga da Associação de Assistência Social São João Vianney, que conversava enquanto costurava um último detalhe na roupa de um dos coelhos.
Segundo Cintia, o maior significado da participação no musical é saber que cada participante tem um potencial a ser explorado e que no momento da apresentação as habilidades de cada um são valorizadas e reconhecidas por educadores e famílias. “No musical, todos podem ver que eles são especiais e estão aqui para fazer a diferença. E para eles, o que fica de ensinamento para a vida é que construções coletivas são feitas passo a passo, e que o resultado pode ser surpreendente”, afirmou.
Orgulho reluzente
Pouco antes do espetáculo começar, a plateia expressava basicamente dois sentimentos: orgulho e alegria. Michele Cristine Domingos, mãe de João Vitor Domingos, 10 anos, estava esfuziante desde a entrada no teatro. “É muito gostoso estar aqui hoje para prestigiar meu filho, O orgulho de vê-lo lá no palco é enorme e estou muito feliz dele fazer parte de tudo isso, e ver que essa experiência o ajuda a se desenvolver, principalmente na relação com outras pessoas”, ressaltou.
Antonio Ramos Filho, presidente do Instituto Semear, chegou com antecedência para prestigiar o espetáculo e o trabalho das crianças e educadores da instituição. “Tudo isso é fruto do trabalho de uma equipe que veste a camisa e coloca o coração e a alma no que faz. Esse tipo de iniciativa mostra que os usuários são importantes e têm um futuro pela frente, e só precisam de gente que acredite, acolha e ajude a acontecer”, disse.
Levino Teixeira da Cruz levou esposa e o filho mais novo para ver Otávio, 11 anos, participar do musical. O menino, junto com o grupo do Centro Comunitário Jardim Santa Lúcia, surpreendeu o público na cena em que apresentam o maculelê – dança folclórica brasileira de origem afro-brasileira e indígena. “Estou emocionado por estar aqui hoje. Participar desse musical transformou meu filho. Hoje ele se expressa melhor, é mais calmo e responsável. Foi um aprendizado para vida”, contou.
Durante o espetáculo, Helen Vieira se surpreendeu diversas vezes: gargalhou com os coelhos apressados, se emocionou com a cena das lagartas que se transformam em borboletas e ficou encantada com a performance da prima Barbara Vitória da Silva que interpretou a duquesa. “Foi uma experiência incrível, amei demais e estou muito feliz de estar aqui”, desabafou.
Se na plateia a emoção era expressa com risadas, palmas e empolgação – principalmente nas cenas de dança – atrás do palco a adrenalina rolava solta cada vez que os artistas entravam e saiam do palco para as cenas. “Achei maravilhoso, me senti uma diva! Foi gostoso ver a reação do público, que bateu palmas, gritou e se emocionou com a gente. Sou muito grata pela oportunidade de participar do musical”, disse Ana Carolina Ricardo Lopes da Silva, 16 anos, uma das Alices que tive o prazer de ajudar fazendo lacinhos azuis que compuseram seu figurino.
Após o fim do espetáculo, Daniela Fischer, diretora artística do musical, fez questão de cumprimentar todos os participantes com abraços e demonstrações explícitas de carinho, respeito e admiração. “Esse é o momento que a gente sempre almejou, de se divertir, de colocar tudo para fora: nossa preocupação, nossa responsabilidade. A gente trabalha duro para que tudo saia do jeito que se pensa, mas na hora sempre tem a emoção que muda tudo. É uma alegria imensa quando vejo o brilho no olho dessas crianças e adultos quando estão em cena. É algo que vem de dentro, um prazer, uma beleza que sai pelos olhos, e é isso que faz a gente seguir em frente e enfrentar todos os desafios para chegar até aqui. Depois de tanto trabalho, tanta dedicação, tudo valeu a pena”, concluiu.
Segundo Daniela, outra surpresa do musical é a reação do público. “As pessoas riram e se divertiram, e isso foi incrível. A gente ensaia muito para tudo dar certo, mas é no dia do espetáculo que a gente sente o feedback do público. O espetáculo tem sentido estético, vale para as crianças pela história infantil, mas também é carregado de significados, como a transformação, a beleza, as dúvidas e tomadas de decisões e a importância de se ver beleza na vida além do que se pode imaginar. Para todas as idades pode se captar um sentido diferente do musical”, explicou.
Visivelmente emocionada, Silnia Nunes, assessora técnica responsável pelo projeto Arte e Cultura, que promove o musical, fez uma reflexão poderosa e cheia de afeto. “A gente tem certeza que é só dar oportunidade para essas pessoas, porque está tudo dentro delas. O que a gente fez é dar apoio para que o espetáculo aconteça, foi dar um texto bacana, que eles se identificassem e pudessem experimentar ser o que eles quisessem ser, cada um da sua forma. O sentimento de missão cumprida é muito maior para eles do que para qualquer um da equipe técnica. Foram quase 10 meses de ensaio, para decorar textos, coreografias e cada novo passo era uma nova surpresa para eles: ensaiar com figurino, luz, cenário. Os desafios iam aumentando e eles deram conta de tudo. Estou orgulhosa, porque eles são incríveis”, finalizou.
Espetáculo
O tema Alice no País das Maravilhas foi escolhido por votação dos artistas das instituições participantes do projeto em 2018. O clássico literário de Lewis Carrol publicado em 1865 conta a história de uma menina chamada Alice, que por meio de uma toca do coelho entra no País das Maravilhas, onde os animais e plantas podem falar. Ela passa a viver muitas aventuras com os habitantes deste mundo fantástico, que instigam Alice a refletir sobre si mesma e o mundo. O musical ganhou uma roupagem própria e foi criado coletivamente com todas as entidades. Cômico em várias cenas, o musical também traz reflexões diversas ao público.
Este ano, a seleção das entidades para o Arte e Cultura foi feita por meio de edital que, entre vários critérios, levou em conta um vídeo produzido sobre a modalidade inscrita. O processo revelou a variedade das práticas artísticas desenvolvidas em instituições que atendem diversos usuários. Ao todo, se candidataram 19 OSC que inscreveram 37 modalidades. Foram selecionadas nove OSC e o espetáculo teve a participação de 156 usuários de 10 a mais de 80 anos.
As instituições participantes foram Programa Gente Nova – Progen (coral performático); Centro Espírita Allan Kardek – Educandário Eurípedes (teatro); Associação São João Vianney (dança); Instituto Semear (hip hop); Sorri Campinas (dança); Grupo Primavera (coral); Casa de Maria de Nazaré – Casa Hosana (danças urbanas); Centro Comunitário do Jardim Santa Lúcia (maculelê) e Associação Nazarena Assistencial Beneficente – ANA DIC IV (dança livre).
O musical multiartístico, intergeracional e inclusivo que visa propiciar a convivência e o aprendizado dos usuários de Organizações da Sociedade Civil integra o Arte e Cultura, um dos projetos do Programa Fortalecimento de Vínculos, uma iniciativa da Fundação FEAC que investe na qualificação de ações integradas de cultura, esporte e cidadania com o objetivo de prevenir o agravamento da vulnerabilidade social.
Saiba mais: https://www.feac.org.br/fortalecimentodevinculos/