Uma teoria sobre a origem do bolo de aniversário conta que a sobremesa nasceu na Grécia Antiga, como forma de homenagear os deuses. A pesquisa foi feita por crianças e adolescentes afastados temporariamente de suas famílias de origem e acolhidos na Casa Maria de Nazaré, em Campinas. Antes de cozinhar, eles acessam a internet para pesquisar a história das receitas e os ingredientes.

Essa é uma das etapas do projeto Sabores e Saberes, realizado em parceria com a Fundação FEAC desde abril de 2020, que já atendeu 69 crianças e adolescentes a partir dos sete anos. Feita a pesquisa para o bolo de nozes, o próximo passo é ir ao supermercado comprar os ingredientes e colocar a mão na massa.

Por meio de experiências gastronômicas semanais, o projeto visa ressignificar o período em que crianças e adolescentes vivem na casa de passagem da instituição. A culinária serve para trazer alguma leveza a um período de afastamento da família que pode ser muito traumático. No projeto, eles participam de todas as etapas, da escolha da receita à degustação.

“O Sabores e Saberes tende a resgatar a autoestima, a convivência em grupo e despertar a individualidade dessas crianças e adolescentes, além de desenvolver habilidades. É um projeto que complementa o serviço que é realizado na casa de passagem, tornando-o ainda mais rico”, explica Renato Franklin, líder do Programa Acolhimento Afetivo, da FEAC.

No projeto, as crianças e os adolescentes participam ativamente de todos os passos e realizam tarefas simples, mas com as quais não estão acostumados, como ir ao mercado, escolher produtos e lidar com dinheiro. Eles também são estimulados a usar a internet, algo a que muitos não tinham acesso em casa.

Além disso, o momento do preparo permite criar um clima aconchegante, com o uso de música e o estímulo a conversas entre todos os participantes. “A culinária é um meio. A gente utiliza tudo isso para conversar e ressignificar as emoções”, explica Valdirene Vitor Souza, coordenadora da Casa Maria de Nazaré.

Casa de passagem: como funciona?

Casa de passagem é uma modalidade de acolhimento institucional. Emergencial e provisória, oferece proteção integral à criança ou adolescente afastado de sua família por algum tipo de ameaça ou de violação aos seus direitos. O encaminhamento pode ocorrer por diferentes órgãos, como o Conselho Tutelar ou a Vara da Infância e da Juventude.

“A maioria das crianças e adolescentes que recebemos são vítimas de violência doméstica ou negligência. Nós falamos que é como se fosse um pronto socorro: quando eles precisam, por alguma razão, afastar-se da sua família por um tempo, eles vêm para nossa casa. Eles permanecem aqui em média por dois meses”, explica Valdirene.

Diferente da modalidade de abrigo institucional, que é um acolhimento de longa duração (até 18 meses, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), a casa de passagem caracteriza-se pelo acolhimento breve de até 90 dias e, por isso, há maior fluxo de pessoas.

“Se a criança fez aniversário hoje e deixamos para cantar parabéns na semana que vem, pode ser que ela não esteja mais aqui. A gente vive um dia por vez”, diz Valdirene. Por isso, os projetos voltados para essas crianças e adolescentes contam com o desafio de terem atividades com começo, meio e fim num curto prazo.

No Sabores e Saberes, também funciona assim. Apesar de o tempo entre pesquisar a receita e prepará-la leve em torno de uma semana, cada etapa do projeto já é valiosa por si mesma. A equipe técnica tem o cuidado de não gerar expectativas nos participantes, mas envolvê-los para que desfrutem cada momento.

“A rotatividade das crianças e adolescentes é um desafio do projeto. Mas, se eles podem ficar só três meses, que esses três meses sejam produtivos, que eles se desenvolvam e sejam estimulados”, pontua Renato.

O Sabores e Saberes, no entanto, adota uma estratégia para que as crianças e os adolescentes possam levar essa experiência com elas. Todos ganham um caderno com sua foto para anotar as receitas.

“Eles levam o caderno e toda a vivência que passaram aqui. Tudo fica guardado como bagagem, para que eles possam levar essa inspiração para a vida. Em casa, vão poder falar para a mãe:  ‘vamos tentar fazer isso aqui? Eu já fiz e sou capaz de fazer’. Isso é autoestima”, diz Valdirene.

Ressignificando experiências

Vanessa*, 12 anos, chegou na Casa Maria de Nazaré em 24 de setembro. Ela espera a hora de retornar para seu lar, onde vive com a mãe e o padrasto. Logo que chegou na casa de passagem, ela conta que estranhou bastante, mas agora se sente acostumada à nova vida.

“Minha rotina mudou bastante, mas ao mesmo tempo melhorou. Em casa, eu acordava tarde, ficava muito tempo na TV. Aqui, tem várias oportunidades e coisas para fazer.” Como momentos de diversão, ela cita as atividades na quadra, na brinquedoteca e o projeto Sabores e Saberes.

A coordenadora Valdirene analisa que é normal crianças e adolescentes chegarem abalados emocionalmente, considerando a ruptura que sofreram. “Ainda que com dor, eles não desejam ficar longe da família. Então, chegam aqui tristes, com raiva. Nós precisamos mostrar que somos parceiros. Queremos fazer com que eles se sintam acolhidos nesse período.”

Além dos benefícios emocionais trazidos pela gastronomia, a ideia é que a criança ou adolescente ganhe mais repertório e experiências.

Valdirene explica que muitos estão acostumados com alimentos industrializados e não têm acesso a alimentos frescos e sucos naturais, por exemplo. “O projeto vem para apresentar novas texturas e sabores, para que eles saiam daqui com mais conhecimentos”.

Vanessa já participou da confecção de “chupchup”, um picolé de saquinho. Para isso, foram usadas diversas frutas: morango, abacaxi, maracujá, kiwi e manga. “Além de aprender mais, conhecer novas frutas e comidas, a gente se diverte”, diz.

A próxima atividade de Vanessa será ir a uma horta orgânica, conhecer o processo desde o plantio das sementes até a colheita e venda de hortaliças sem agrotóxicos. As visitas externas também fazem parte do projeto, como forma de enriquecer a experiência. Outros participantes já tiveram a oportunidade de ir a restaurantes de comidas típicas de diferentes países, como árabe, mexicano e japonês.

Apesar do momento desafiador que essas crianças e adolescentes vivenciam, a equipe do projeto segue engajada para proporcionar mais riqueza e leveza à rotina deles.  “De alguma forma, esperamos que a passagem deles seja ressignificada de uma maneira positiva, para que saiam daqui diferentes de quando entraram. Ainda que eles criem um vínculo com a equipe, esperamos também que eles saiam fortalecidos para viverem outras coisas lá fora”, diz Valdirene.

*Nome trocado para preservar a identidade da adolescente.

Por Laíza Castanhari