(Por Ingrid Vogl)
Vamos falar sobre sentimentos e gentileza? A proposta inusitada da professora Michelle Felippe Barthazar para a turma do 2º ano B da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Padre Leão Vallerie, no Parque Valença em Campinas/SP, foi aceita com empolgação pelos alunos em fase de alfabetização.
Na sala com carteiras dispostas em U, de maneira que todos os cerca de 30 alunos consigam se ver, as letras do alfabeto dividem espaço nas paredes com cartazes, desenhos e colagens que remetem às várias expressões emocionais. A colorida Árvore de Boas Atitudes e Sentimentos é formada por recortes que apontam o que os alunos consideram importante para uma boa convivência na escola e estão em sintonia com o que é tratado em sala de aula.
A tarefa da manhã quente daquela quarta-feira, quando estive com a turma, foi criar Pratinhos dos Sentimentos. A partir de um círculo dividido em quatro espaços em uma folha de papel, os alunos desenharam quatro carinhas que expressam os sentimentos que consideram os mais importantes. Lucas Gabriel da Silva, 7 anos, caprichou em seus desenhos e escolheu um giz de cera com um tom bem próximo da cor de sua pele para colorir suas expressões. “Eu me sinto bem, alegre e tranquilo fazendo as atividades sobre os sentimentos que a professora pede. Aprendi que quando sentimos carinho pelas pessoas que são boas conosco, é legal retribuir esse sentimento”, disse.
Alegria, tristeza, raiva e medo foram as expressões escolhidas por Maria Eduarda Abonissio da Silva, 7 anos, para compor seu Pratinho de Sentimentos. “A gente sempre tem que retribuir a bondade das pessoas, mas quando o sentimento é ruim, podemos lidar com eles também. Por exemplo, quando uma amiga está chorando e triste, eu quero ajudar e conversar para que ela melhore”, explicou.
Depois de terminado o desenho, as crianças o recortaram, e com a ajuda da professora, colaram as expressões em um pratinho de plástico. A ideia é que todos os dias, os alunos indiquem, com um prendedor que foi decorado com tinta e glitter pelos próprios alunos, como ele está se sentindo. “O objetivo é que o Pratinho de Sentimentos ajude as crianças a se expressarem e os pais a entenderem melhor como os filhos se sentem naquele determinado dia ou momento”, explicou Michelle.
Conflitos x aprendizado
Para Michelle, conhecer os alunos e perceber o que estão sentindo está diretamente relacionado à mediação de conflitos escolares e à aprendizagem dos pequenos nesta fase de alfabetização. “O mais significativo em todo esse processo é poder criar diálogos para a solução de discórdias e assim ajudar os alunos a lidar melhor com essa questão dos sentimentos. A aprendizagem está permeada pelos conflitos, que se não forem resolvidos influenciam diretamente no ensino e aprendizagem”, afirmou.
Empatia
O que a professora desenvolve em sala de aula tem relação com o ensino de empatia*, que é o sentimento que conecta as pessoas umas às outras captando o que o outro está sentindo. Ensinar sobre a empatia é fazer com que a criança entenda a visão e os valores do próximo e aprenda a se colocar no lugar do outro. Isso resulta em relações interpessoais mais consistentes e onde cooperação, compreensão e solidariedade estão presentes, desenvolvendo na criança o respeito à diversidade, a capacidade do diálogo e a criatividade.
Vivemos em sociedades onde a preocupação com o outro nem sempre é prioridade e neste sentido, a falta de empatia pode ser associada a problemas como o bullying, a intolerância, o preconceito e a violência. E o trabalho com temas relacionados à sentimentos e gentileza que a professora Michelle desenvolve com seus alunos vai justamente nesta contramão, estimulando as crianças a terem relações sociais saudáveis.
Outros resultados positivos que o desenvolvimento da empatia pode acarretar para a criança e seu futuro são o aumento da habilidade de superar adversidades, de lidar com diferenças e conflitos e trazer benefícios na saúde, nos estudos e na carreira profissional.
O assunto também está previsto na Base Nacional Comum Curricular que deve ter sua versão finalizada neste ano. O documento prevê um conteúdo mínimo que deve ser ensinado da educação infantil ao ensino médio, em todas as escolas municipais, estaduais, federais e particulares. A proposta-base deverá contar com três macro competências: as socioemocionais, as comunicacionais e as cognitivas (conteúdo das disciplinas). A inclusão das habilidades socioemocionais, como empatia, cooperação e liderança, assim como a competência comunicativa, devido às múltiplas linguagens do mundo atual, visam promover uma formação mais completa para os alunos, muito além das disciplinas que já existem tradicionalmente na grade escolar.
Na direção certa
Com o apoio da família e tendo a continuidade de um trabalho iniciado no ano anterior, o trabalho de Michelle vai de vento em popa. Na opinião de especialistas, a professora está mesmo no caminho certo. Segundo o filósofo francês Edgar Morin, um dos principais objetivos da educação é ensinar valores, que são incorporados pela criança desde muito cedo. “É preciso mostrar a ela como compreender a si mesma para que possa compreender os outros e a humanidade em geral. Os alunos têm de conhecer as particularidades do ser humano e o papel dele na era planetária que vivemos”, disse em entrevista para a revista Pros Verso e Arte. De acordo com Morin, o sistema educacional, de maneira geral, não incorpora essas discussões e fragmenta a realidade, simplifica o complexo, separa o que é inseparável e ignora a multiplicidade e a diversidade.
Cláudia Chebabi , gerente do Departamento de Educação da Fundação FEAC, concorda com Morin e complementa. “O trabalho da professora é pautado em uma visão do sujeito integral, onde ele não está olhando para alguém limitando a aprendizagem a um viés conteudista. Então olhar para o sujeito de forma integral entendendo que ele está contribuindo para a construção de valores é o que tem de mais rico, porque fazer a construção coletiva de um livro acaba sendo um meio de aprender a escrever, e para criar uma frase, a criança precisa de um raciocínio, o que é uma aprendizagem formal. Portanto, trabalhar com essas temáticas transversais é muito significativo, pois é preciso reconhecer que as relações são importantes, que conceitos como o que eu penso a respeito de algo, como me comporto frente a um conflito e como entendo o que o outro está sentindo é essencial”, avaliou.
Livros coletivos
A necessidade de falar de sentimentos em sala de aula surgiu em reuniões com relato de pais, sobre as angústias a respeito da criação dos filhos, em lidar com frustações e impor limites. Muito mais do que checar as notas e o comportamento das crianças, os encontros com eles foram transformados em espaços de diálogo. A partir disso, e de uma situação em sala de aula em que uma criança disse para outra que seu cabelo era , por ser afro, Michelle sentiu a necessidade de lidar com essas questões em sala de aula.
O trabalho com temáticas transversais às curriculares foi iniciado em 2016, quando a mesma turma estava no 1º ano do ensino fundamental. O primeiro trabalho teve como tema a família, e além de atividades como desenhar e pintar cada uma das crianças em tamanho real e trazer uma cabelereira especialista em estilo afro para a sala de aula que ensinou as crianças como cuidar e valorizar a diversidade de seus cabelos, Michelle criou um livro coletivo sobre o tema. Nele, as crianças expressavam como enxergavam sua composição familiar. A dinâmica consistia no aluno levar o livro para casa e junto com familiares, expressar como era sua família, por meio de desenho e texto.
“A gente (alunos e famílias) já se conhece desde o primeiro ano do ensino fundamental, e o fato do trabalho ter tido uma continuidade foi muito importante. Conhecê-los facilitou o processo. Aprender a ler, escrever é uma ânsia muito grande que os pais têm em relação à escola e aos filhos nestes primeiros anos do ensino fundamental, mas como já trabalhamos esses temas transversais desde o ano passado, as famílias já entendem, reconhecem a importância e não sentem mais estranhamento quando os alunos chegam em casa e dizem que tiveram aula sobre sentimentos”, explicou Michelle.
Quando a sala estava trabalhando sobre como se sentiam em relação à família e identidade, surgiu o tema sentimentos. Os alunos começaram a trazer relatos cotidianos sobre as diferentes emoções que vivenciavam em seus cotidianos. “Eles já sentem coisas, mas não sabem nomear, não sabem dizer exatamente o que estão sentindo, mas começam a perceber as sutilezas entre os sentimentos, que são um refinamento das emoções”, disse Michelle.
A professora garante que as discussões sobre sentimentos e gentileza com os alunos facilita seu trabalho. “A escola é um espaço de conflito por excelência. Trabalhar com esses temas transversais facilita muito o desenvolvimento dos conteúdos curriculares. Uma produção de texto, um gráfico que estejam relacionados com sentimentos e gentileza, que são os temas tratados hoje em sala de aula, tem muito mais significado para os alunos e mesclados às disciplinas, facilitam o entendimento das crianças. Tudo que para os alunos tem algum significado, eles fazem com mais atenção, mais empenho e assim acabam aprendendo mais rápido e com mais facilidade”, avaliou a professora.
Produção atual
Este ano, os livros que estão sendo escritos coletivamente com alunos e famílias do 2º ano B têm como tema Gentileza e Sentimentos. Confeccionados pela professora, com folhas sulfite tamanho A4 unidas por um espiral, os livros trazem a definição dos temas e atos que os exemplificam. As páginas seguintes são destinadas aos alunos e suas famílias se expressarem sobre os temas.
No Gentileza, a página é dividida em duas partes: na parte de cima, os alunos expressam um ato gentil que fizeram e na parte inferior, uma gentileza recebida. Seguro e orgulhoso de suas vivências gentis, Alexander Severiano da Silva Júnior mostra a página que completou. Ele escolheu compartilhar com os colegas o dia em que serviu café da manhã na cama para a mãe; e que recebeu gentilmente um assento no transporte coletivo cedido por uma mulher.
No Livro dos Sentimentos, o aluno ilustra qual foi o sentimento vivenciado que foi marcante para ele. Logo abaixo, escreve qual foi o sentimento. O desafio é que os pais participem do registro. No dia seguinte, o aluno apresenta para toda sala o que escreveu no livro, e o assunto serve de gancho para discutir o tema com toda a sala. “O resultado está sendo surpreendente. Até agora, apareceram sentimentos muito diversos, como a vergonha, a raiva e a explicação é sempre bem contextualizada. E a gentileza está sendo exercitada todos os dias pelos alunos, que já tem um olhar mais aguçado para o outro. Eles começam a entender que a gentileza acontece no dia a dia e nos pequenos gestos”, disse orgulhosa de seus pequenos alunos, que em tempos de individualismo acentuado, vão aprendendo a demonstrar gentileza e entender o que sentem, se tornando assim pessoas que praticam a cidadania em atos diários.
Destaque na FEAC
O trabalho inédito que a professora Michelle desenvolve é uma das ações pedagógicas da EMEF Padre Leão Vallerie que se destaca como boas práticas na rede pública de ensino de Campinas. Em iniciativas da Fundação FEAC e do Compromisso Campinas pela Educação (CCE), alunos da EMEF foram vencedores do Concurso de Redação Minha Família na Escola, conquistando a terceira e a segunda colocação em 2010 e 2014, respectivamente.
O Concurso tem como objetivo estimular alunos dos 5º e 9º anos do ensino fundamental das escolas públicas de Campinas a se expressarem sobre assuntos referentes à participação da família na vida escolar, e em 2017 vai para sua 8ª edição. Em 2016, o “Projeto Escologia: a mudança é você quem cria!” se destacou ocupando o segundo lugar no prêmio Atitude Educação, que desde 2014, visa valorizar as ações que qualificam a educação pública em Campinas.
“Inciativas de premiação são valiosas não pelo prêmio em si, mas pela oportunidade de divulgação de escolas públicas que desenvolvem trabalhos competentes e assim, podem ser reconhecidas e valorizadas. Existe ainda um ganho intangível, em relação a motivação dos alunos em participarem deste tipo de iniciativas que ocorrem no ambiente escolar. Em várias oportunidades, diretores, professores e até familiares dos alunos relataram situações em que houve maior empenho e envolvimento dos alunos nas atividades escolares. No final, o prêmio se torna secundário e os ganhos marginais, de fato são os mais significativos”, ressaltou Cláudia Chebabi.
O Atitude Educação e o Minha Família na Escola são ações do CCE, que tem como meta sensibilizar e mobilizar a sociedade para contribuir com a defesa e garantia dos direitos à educação pública de qualidade em Campinas/SP.
Saiba mais sobre o CCE e suas ações: www.compromissocampinas.org.br
*Saiba mais sobre o ensino de empatia AQUI.