Por Laíza Castanhari

A situação nos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes possui diversos desafios. A passagem pela instituição já indica um momento de ruptura de seus vínculos familiares e com a vida até então conhecida. Desde 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que esta medida protetiva seja provisória e excepcional. O ideal é que haja reintegração à família de origem ou extensa ou, após essa possibilidade se esgotar, seja destituído o poder familiar, entrem para o cadastro de adoção e sejam encaminhados para uma família substituta. Em 2017, uma alteração no artigo 19 do Estatuto definiu que a permanência em acolhimento institucional não deve se prolongar por mais de 18 meses.

Porém, a realidade costuma ser diferente: muitos vivem em acolhimento institucional mais tempo do que o previsto, permanecendo até os 18 anosquando precisam sair. O projeto Trilhar, realizado pela organização Guardinha em parceria com a Fundação FEAC, tem um olhar de cuidado e preparo para esses adolescentes antes que passem por mais uma ruptura e saiam do acolhimento sem preparo, após atingirem a idade limite.  

A autonomia dos jovens precisa ser trabalhada para amenizar seu impacto. “As principais dificuldades que eles enfrentam se referem à escassez de políticas de apoio a essa transição, como políticas de acesso à moradia, trabalho e renda”, analisa Mahyra Costivelli, coordenadora do Grupo Nós, do Instituto Fazendo História, que nasceu em 2011 com o objetivo de facilitar o processo de transição de jovens em acolhimento para a vida adulta. O projeto inspirou a criação do projeto Trilhar. 

Mahyra lembra que, após se desligar do abrigo, o ideal é que o jovem continue recebendo apoio: “A exigência de que estejam prontos para a vida autônoma e para seguirem com seus projetos de vida sozinhos é algo extremamente injusto, em desacordo com as possibilidades de alguém com apenas 18 anos”. 

Adolescentes em acolhimento 

Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitárialançado em 2006, adotou o termo “acolhimento institucional” para designar os serviços de atendimentona impossibilidade de manutenção da criança ou do adolescente em sua família de origem ou substituta. Segundo as diretrizes do Plano e de normativas nacionais relacionadas aos direitos da criança e do adolescente, os serviços de acolhimento institucional devem garantir os seus direitos e propiciar a convivência comunitária, no contexto de saúde, lazer, educação, dentre outras, evitando o isolamento social. 

Ainda segundo o Plano, é dever do abrigo preparar a criança e o adolescente para o processo de desligamento, nos casos de reintegração à família de origem, família extensa ou de encaminhamento para adoção. Já nos casos dos adolescentes que completarão a maioridade no serviço de acolhimento, o desenvolvimento e fortalecimento da sua autonomia é parte fundamental do trabalho a ser desenvolvido e garantido a esses adolescentes.  

Na prática, a adoção não é uma opção para a maioria dos jovens acolhidos. No Brasil, atualmente, há 8.600 pessoas aptaa serem adotadas, segundo o Cadastro Nacional de Adoção. Já o número de pretendentes a adotar é cinco vezes maior. Essa discrepância é explicada pelo perfil buscado pela maioria, que não condiz com o dos acolhidos. Somada a outros fatores, a idade avançada é uma das principais travas, pois 83% dos pretendentes à adoção só aceitam crianças com até 6 anos, que representam apenas 30% do público em acolhimento. 

“A sociedade, no geral, acha que todas as crianças que estão no abrigo são abandonadas quando nascem. Na verdade, isso é a minoria. A maior parte está lá por conta de violação de direitos relacionados à violência, como física e sexual, e por negligência, o maior motivo de acolhimento”, explica Ana Lídia Puccini, líder do programa Acolhimento Afetivo da FEAC. Portanto, as crianças costumam chegar aos abrigos já maiores, carregando traumas e dificuldade de criar vínculos.  

Em Campinas, há aproximadamente 350 crianças e adolescentes em situação de acolhimento, segundo dados de 2020 da Secretaria Municipal de Assistência Social. Destas, aproximadamente 43% têm entre 12 e 17 anos. A negligência é responsável por 66% dos acolhimentos. Se acompanhar o cenário nacional, os adolescentes da cidade permanecerão no acolhimento até a maioridade. 

Pensamos na proposta do projeto Trilhar a partir do número de adolescentes que completariam a maioridade no acolhimento, das dificuldades de alguns serviços de acolhimento em se dedicarem a planejamentos individualizados, com cada adolescentes, e da insuficiência de portas de saída para esses jovens”, explica Ana Lídia.  

O projeto Trilhar é direcionado a adolescentes em acolhimento que, completando a maioridade, têm de sair da instituição. Acostumados a uma vida institucionalizada, eles precisam de suporte técnico e emocional para desenvolverem um projeto de vida, visando a sua independência. Para essa preparação, o projeto conta com uma equipe e com mentores voluntários, que são uma referência afetiva a esses adolescentes. 

“O desafio de conquistar o jovem, para firmar a parceria, é a parte mais delicada, porque ele teve uma série de rupturas na vida. Nós prezamos muito o cuidado de quem é a pessoa que vai ser inserida na vida do jovem, como essa pessoa vai se inserir, para que não se repita a história que o jovem possui”, destaca Frederico Godoy, técnico social da Guardinha.

Mentoria: via de mão dupla

O Trilhar nasceu em 2018 e já atendeu 48 jovensAtualmente, o projeto trabalha com 31 jovens. voluntário interessado passa por uma avaliação individual e, após ser aprovado, recebe formação da equipe técnica. O principal critério é que esteja aberto para cultivar um vínculo com o jovem e assuma o compromisso de acompanhar o adolescente durante toda a execução do projeto.  

Observamos as habilidades do mentor em dialogar e mediar situações. Vemos como ele lida com desafios, como organizar a vida pessoal, e quais as suas opções de lazer”, explica Frederico. Na outra ponta, estão os jovens, para os quais o projeto busca, dentro de sua lista de mentores, aquele que melhor atenda a seu perfil e suas necessidades. 

O Trilhar se guia por quatro pilares: moradia, trabalho, uso consciente do dinheiro e cidadania, que inclui a autonomia para circular na cidade. O primeiro é uma questão central, pois os jovens precisam de uma alternativa quando deixam o abrigo. A porta de saída costumam ser as repúblicas, serviço público que oferece acolhimento provisório para jovens nessa situação, previstas no Sistema Único de Assistência Social.  Em Campinas, porém, há apenas duas, uma masculina e uma feminina, com seis vagas cada.  

Trilhar prevê expandir as perspectivas e possibilidades do jovem, para que novos caminhos sejam por ele desenhadosA cada mês, o adolescente é convidado a desenvolver uma meta, ligada aos quatro pilares do projeto. O mentor ajuda o jovem a refletir sobre os seus objetivos de vida quais recursos ou pessoas precisa acionar para atingi-los. 

Os acompanhamentos costumam ser semanais, de preferência em algum lugar público, para que o jovem desenvolva autonomia para se locomover no município. Alguns encontros são no abrigo, até para que o serviço de acolhimento conheça o mentor. Mas a ideia é que sejam feitos em outros locais, assim o jovem pode aprender transitar na cidade”, explica Ana Lídia. Mensalmente, há reunião entre mentores e equipe técnica para troca de experiências.  

Assim como qualquer relação humana, aquela entre mentor e jovem é uma construção de confiança. “Cada um tem seu tempo, seus valores e suas necessidades. Não é algo que aconteça no primeiro ou segundo encontro, mas que vai sendo construído ao longo do tempo”, observa Caio Sakamoto, que se tornou mentor no final de 2019.  Segundo ele, a mentoria é, na prática, uma relação de parceria:

“Não é uma via de mão única. São jovens que passaram por muitas coisas. Eu admiro o adolescente que acompanho. Ele é muito resiliente e isso acaba me inspirando, ele está sempre sorrindo… esse é o grande aprendizado. Estar em contato com ele dá uma perspectiva diferente da realidade.” 

Caio Sakamoto, mentor do projeto Trilhar


Mobilização social

O Trilhar segue em busca de ampliar os horizontes e oportunidades para a vida de jovens em acolhimento. Para isso, a participação da sociedade é fundamental, mas consegui-la é um desafio 

Atualmente, o Trilhar está em busca de oito novos mentores. É necessário ter mais de 25 anos, morar em Campinas e ter disponibilidade para se dedicar pelo menos uma vez por semana às atividades do projeto. Os interessados devem entrar em contato com a Guardinha, pelo telefone (19) 99518-9305 ou pelo e-mail [email protected].

No dia 8 de abril, haverá uma palestra informativa sobre o projeto, às 19h. O acesso será virtual e os interessados também podem se inscrever pelo e-mail do projeto