(por Ariany Ferraz)
Nem sempre a culpa compensa a violação de direitos. Como solucionar conflitos sem recorrer apenas à punição? É o que a chamada Justiça Restaurativa propõe: reconciliar, reparar danos e restaurar as relações. Uma nova visão de justiça que busca a harmonia social, utiliza-se de metodologias e técnicas de resolução de conflitos com um processo colaborativo de maior escuta e participação da vítima e do infrator, com o objetivo principal de resgatar o tecido social que é rompido com o ato infracional.
Há cerca de 14 anos a prática é executada no país, que hoje acumula uma série de iniciativas em vários Estados com resultados positivos, principalmente em escolas, também como auxílio a medidas socioeducativas, casos de violência doméstica e crimes de pequeno e médio potencial ofensivo. Além disso, a implementação da Justiça Restaurativa é reforçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Uma pesquisa recente realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), demonstrou que a prática no país tem servido para a resolução dos conflitos; responsabilização dos ofensores pelos seus atos-reinserção social; empoderamento do ofendido e da comunidade; que os ofensores não reiterem na prática de crimes; promover práticas para um convívio mais pacífico e/ou pacificação social; reestabelecer os vínculos comunitários/familiares e aprendizado de uma nova forma de relação e transformação das pessoas e das relações.
Em Campinas, vem sendo executada há 12 anos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Atualmente, a Vara da Infância e Juventude de Campinas vem fomentando o debate e promovendo a Justiça Restaurativa por meio do trabalho com um grupo gestor e um Núcleo dedicado que busca difundir a prática no município, que conta com a coordenação do Juiz da Infância, Marcelo Bergo.
Também compondo o grupo, a Fundação FEAC vem participando das ações e apoiando a iniciativa por meio do Programa Enfrentamento a Violências. O programa busca promover o bem-estar e a cultura de respeito, empatia, tolerância e paz, incentivar ferramentas de gestão de conflitos, além de novas abordagens e soluções inovadoras para o enfrentamento das violências. “Se envolver neste grupo é importante e necessário porque atuamos nesta temática e isso nos ajuda a encontrar soluções de maneira coletiva e certamente mais efetiva. Entendemos a Justiça Restaurativa como importante momento de reconhecimento de algo que não foi legal, conversar sobre e entender que pode ser diferente é uma oportunidade de refletir e diminuir situações de violência em diversos espaços”, avaliou Lincoln Moreira, líder do Programa.
Para entender melhor o que representa a Justiça Restaurativa, como funciona e como vem sendo executada, a Fundação FEAC conversou com o juiz Marcelo Bergo. Confira a entrevista:
Fundação FEAC- O que é Justiça Restaurativa?
Marcelo Bergo– Acabamos nos apoiando na ideia da justiça formal nas áreas criminal ou infracional, como uma justiça retributiva, ou seja, a partir do momento que é violada uma norma, se identifica e se busca uma medida, seja punitiva, retributiva ou mesmo uma socioeducativa, no caso de adolescentes. A justiça restaurativa surge como uma outra via de solução de conflito. Ela vai se relacionar com as pessoas levando em consideração a questão da vítima, não só do ofensor, e também com a comunidade e a própria família. Assim, procura-se verificar o conflito, quais foram os envolvidos e porquê aconteceu, para encontrar uma forma de se restaurar aquele conflito e não simplesmente identificar o infrator e aplicar uma punição. Nesse modelo tradicional da justiça retributiva, a própria vítima, que sofreu o dano diretamente, acaba funcionando como um objeto de prova para a punição do infrator. A vítima não é ouvida, não se sabe quais dificuldades ela passou com o ato e depois dele. Na Restaurativa vão se restaurar as relações, visando também a reparação do dano sofrido, com a responsabilização não só do ofensor, mas a contribuição da vítima e da própria sociedade. Isso no campo processual. E no campo geral é chamada como a “Justiça de Paz”, que tenta incutir nas instituições e na sociedade uma cultura de paz que visa restabelecer as relações.
FF- Quais são os valores que guiam essa prática?
MB– Existe uma resolução do CNJ 225/2016. Um dos princípios basilares é a voluntariedade, onde são convocadas as partes envolvidas (vítima, réu, comunidade e família) e isso tem que ser feito de uma forma consensual. E como ela não exclui eventualmente o processo, pode ser colocada antes ou depois, por isso tem o princípio do sigilo. O que é debatido ali, surtindo ou não efeito, não pode ser utilizado como uma prova no processo formal. Tem a confidencialidade também, pois o facilitador que vai atuar nessa relação não pode servir como testemunha ou trazer o fato à tona se passar por um julgamento formal. Além de ter a consensualidade, celeridade, urbanidade, entre outros.
FF- Quais são as situações em que é possível aplicar a Justiça Restaurativa?
MB– De forma geral, como ela não exclui a justiça tradicional retributiva, ela é uma outra forma de resolução de conflito. Em nossa atuação, no âmbito da justiça com a criança e o adolescente, por exemplo, num ato infracional equivalente a um furto, facilmente você pode estabelecer um contato entre vítima e autor. Ou pode ser aplicado em muitas questões envolvendo o ambiente escolar. Hoje em dia é muito comum ofensas e ameaças, bullying, danos ao patrimônio público, e pode ser utilizada para a reparação de um dano causado.Como você traz a vítima, ofensor, família e a própria comunidade, você consegue restaurar as relações, como também servir de modelo para própria instituição. E quando você parte para crimes mais graves, como violência sexual, começa a se limitar o campo de atuação.
FF- Como recorrer a Justiça Restaurativa?
MB– Praticado um ato infracional ou um crime, não existe uma exclusão da justiça tradicional. Por exemplo: imagine um ato infracional e que foi feita uma ocorrência dentro da escola. Na verdade vai ter uma tramitação a princípio normal, mas que podemos fazer um encaminhamento pré-processual. Ou uma discussão na escola que gerou uma lesão, o próprio Ministério Público quando recebe o Boletim de Ocorrência pode sugerir o encaminhamento para a Justiça Restaurativa como uma fase pré-processual também. Alcançado o acordo, pode-se aplicar uma remissão como forma de exclusão do processo. Não só antes, mas no curso do processo pode também ter encaminhamento, a depender do caso, seja pelo Ministério Público, pedido do advogado, pelo Juiz de ofício se verificar que tem possibilidade, suspende o andamento do processo normal e encaminha para o setor próprio, com um facilitador e equipe técnica para fazer o círculo restaurativo. E se houver resolução pode-se trazer isso pros autos como uma homologação e até extinguir o processo infracional.
FF- E é possível também se aplicar fora do âmbito judiciário?
MB– Sim, na comunidade. É importante como uma cultura de paz, são práticas restaurativas com esses princípios todos que fazem parte da composição, da prevenção e da comunicação não-violenta. Isso é muito trabalhado nas escolas, em Santos/SP, por exemplo, visando a não-violência. Aqui em Campinas, dentro da Fundação CASA, presente no convívio com práticas restaurativas, ressocialização e até dentro da própria medida socioeducativa. Também no acolhimento de adultos, de dependentes químicos e na Casa Jequitibá (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente Jequitibá) que tem realizado muitas práticas lá. Então eles conseguem estabelecer esse diálogo de forma restaurativa para resolver conflitos internos.
FF- Poderia exemplificar uma situação?
MB– Um exemplo real foi de um grupo com várias pessoas em um abrigo que queriam assistir a um filme e apenas uma pessoa queria ver o último dia da novela. Como a decisão da maioria não contemplava a todos isso gerou um tumulto. E por meio de um círculo de conversa, conseguiram dar a oportunidade de que todos se manifestassem, com escuta, e chegando em um consenso que atendesse a todos. É isso, você consegue aplicar em quase todo ambiente.
FF- Qual o panorama dessa prática no Brasil?
MB– Primeiro é uma prática nova. Uma nova maneira de se encarar os conflitos. E existe muitas vezes uma reação da própria sociedade. Quando a gente encaminha por aqui alguns casos, no pré-círculo, em que serão ouvidas inicialmente as partes, pode acontecer a negação do agressor e da vítima, às vezes a vítima pode negar a participar naquele círculo restaurativo, pois ela já vem com ideia punitiva. É uma questão cultural que tem que ser mudada.
FF- Como está a implementação em Campinas?
MB– A Justiça Restaurativa existe há mais de 10 anos em Campinas, mas vem a passos lentos. Temos um grupo gestor, com cerca de 60 pessoas,que está implantando o Núcleo de Justiça Restaurativa. Podemos pensar na Justiça Restaurativa como um apoio da rede de garantias, por isso é interessante que o público gestor seja diversificado. O grupo pensa ações para difundir a prática e a ideia é que envolva várias instituições, como COMEC, SETA, Fundação CASA, Aldeias Infantis, abrigos, advogados, Guarda Municipal, Polícia Civil, Militar, defensoria, Ministério Público, rede de garantia de direitos no município e estado, educação, sociedade civil, entre outros. E os integrantes estão divididos em subgrupos. Tem um voltado para a questão do ‘Projeto de lei’; já temos um projeto elaborado que iremos encaminhar para aprovação. Tem outro subgrupo voltado para a ‘Formação’, pois a maioria dos interessados não tem a formação de Justiça Restaurativa e já está prevista essa capacitação – estamos buscando parceria para certificar também. Importante também o subgrupo das ‘Vivências’, que é trazer as pessoas de fora do âmbito judicial que já estão realizando essas práticas. E o mais recente, o subgrupo ‘Drogadição em escolas’, pois na área da infância é o problema maior que enfrentamos hoje, grande parte do adolescentes está com problema de evasão escolar e consumo de substâncias entorpecentes; e com esse subgrupo estamos pensando em formar algumas ações voltadas para as escolas, como uma forma preventiva.
FF- E quais os maiores desafios?
MB– A gente sente algumas dificuldades hoje em relação às questões estruturais. Nós precisamos de um local adequado, em Campinas ainda não temos um espaço físico destinado a isso. Outra é a questão da própria formação da pessoa que quer atuar, pois exige uma formação técnica. Só o facilitador que passou pelo curso de formação que vai poder aplicar a técnica, pois existe metodologia para chegar na solução. Apesar de falar sempre das dificuldades, o que tem nos alegrado muito é que existe muita gente querendo participar não só do grupo gestor como do Núcleo. Nós estamos realizando um curso de formação de facilitadores. As pessoas não necessariamente precisam integrar o grupo gestor, mas podem vir se tiverem interesse de formação como facilitadores.