Quando você acabar de ler essa matéria, ao menos uma criança terá sofrido abuso sexual. Dados compilados pela Childhood Brasilorganização que trabalha com prevenção e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, mostram que, a cada hora, quatro crianças ou adolescentes sofrem violências sexuais. Mas, como se estima que apenas 10% dos casos são denunciados, esse número é certamente maior. E o contexto da pandemia piorou ainda mais a situação. 

Segundo dados levantados pelo Ministério da Saúde entre 2011 e 2017, 64,8% dos agressores são familiares ou conhecidos das vítimas, e 62% dos casos acontecem na residência da vítima ou do agressor.  

“Quando começou a pandemia, nossa preocupação foi com um possível aumento da situação de violência, por causa do convívio mais intenso com possíveis agressores”, diz Leonardo Duart Bastos, coordenador da Comissão de combate à violência doméstica contra crianças e adolescentes do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campinas (Vdcca/Cmdca). 

Outro problema é o tempo muito maior em que crianças e adolescentes ficam na internet. “O abuso sexual virtual aumentou bastante. Isso começou antes, com a história dos nudes. Depois, vieram os vazamentos de fotos. Atendo muitos casos assim”, afirma a psicóloga Dalka Ferrari, coordenadora do Centro de Referência das Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae (CNRVV), que faz atendimento a vítimas e a seus familiares. 

Crianças e adolescentes também reduziram muito o contato com as escolas, canal importante dentro de uma rede de proteção que inclui ainda serviços de saúde e conselhos tutelares, entre outros. 

Eles não estão indo à escola. Sempre houve um problema de invisibilidade e subnotificação da violência sexual. A pandemia agravou muito isso”afirma Natália Valente, do Programa Enfrentamento a Violências, da Fundação FEAC. 

Conhecendo as vítimas 

Em 18 de maio de 1973, a menina Araceli Cabrera Crespo, 8 anos, foi raptada, drogada, estuprada e assassinada no Espírito Santo. Nunca ninguém foi preso. 

Foi em memória a esse caso que o governo federal instituiu, em 2000, o 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, para chamar a atenção para o problema e discutir soluções. 

Mais de 40 anos depois, o perfil das vítimas de violência sexual ainda é muito parecido com o de Araceli. Segundo os dados coletados entre 2011 e 2019 pelo Disque 100canal de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 82% das vítimas são do sexo feminino. Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que, em 2019, 57,9% de todas as vítimas tinham 13 anos ou menos.  

Há, porém, uma diferença importante. Araceli era branca. Em 2019, segundo dados do Observatório da Criança e do Adolescente, da Abrinq, 56% das vítimas eram negras ou pardas. 

Já a psicóloga Dalka Ferrari destaca que “a violência sexual ocorre em todas as classes sociais. Nas mais ricas, fica até mais escondida, existe um jogo muito elaborado, que envolve coisas como dopar a mãe para cometer o abuso e tortura psicológica da vítima”. 

As violências sexuais 

Abuso sexual ocorre quando adultos criam com a criança ou adolescente algum tipo de relação ou jogo sexual com a finalidade de se satisfazer. Já a exploração sexual se trata de relação sexual com adultos envolvendo pagamentos ou outros benefícios, como alimentos ou presentes. 

Num cenário marcado pela invisibilidade, a exploração sexual é ainda mais invisível. “São casos bem mais complicados, envolvem muitas vezes organizações criminosas mais complexas”, destaca Leonardo. 

“Existe muito preconceito com as vítimas de exploração sexual. As pessoas acham que elas sabem o que estão fazendo”, ressalta Natália, que ainda deixa um alerta: “Com o impacto financeiro da pandemia, crianças e adolescentes ficam mais expostos a esse crime.”

Entendendo as violências sexuais 

O abuso e a exploração sexual são, na verdade, a ponta de um iceberg. Existe toda uma estrutura social que possibilita que ocorram. “Nós trabalhamos os conceitos sobre violências sexuais, mas não olhamos isso como um fenômeno isolado. Há estruturas sociais reprodutoras, como o machismo, o patriarcado, classismo, o racismo e a lgbtfobia”, diz Caroll Viel, coordenadora do projeto Novo Amanhecerparceria entre a FEAC e o CPTI. 

A iniciativa busca, através de atividades lúdicas, fazer com que crianças e jovens de territórios vulneráveis entrem em contato com o problema. “Há uma ausência de informação sobre violência sexual no territórioÉ um tabu na sociedade, que sexualiza a infância”, afirma Caroll. 

Até por isso, com crianças de 6 a 10 anos, o projeto não fala diretamente sobre o assunto, e adota uma abordagem metodológica com dois dado— um com expressões de sentimento, outro, com lista de lugares como casa, igreja e escola. “Nós vamos trabalhando com os sentimentos que aparecem para cada lugar, mostramos para elas quais os locais seguros”, continua Caroll. 

Já com os adolescentes, os jogos tocam mais nas estruturas sociais para ajudá-los a entender as violências sexuais. Discutimos a naturalização da violência, o que ela é, onde podem buscar apoio caso sejam vítimas, o que fazer para prevenir que aconteça”, explica Ike Banto, educador social do projeto. 

O trabalho do Novo Amanhecer envolve meninas e meninos. Os dados coletados pelo Ministério da Saúde entre 2011 e 2017 mostram que 87,9% dos agressores são do sexo masculino. As questões de gênero estão postas, tem de colocar o homem na pauta. Eles se violentam e são os que mais violentam os outros. Não dá para tratar do problema da violência sexual sem eles”, diz Livia Guimarães, consultora do Programa Enfrentamento a Violências, da FEAC. 

Denúncia 

Ike também se lembra do resultado de um dos jogos, que tinha como objetivo fazer com que os jovens entendessem que atos que parecem normais eram, na verdade, violências. “Após jogarmos, duas jovens fizeram denúncias de abuso sexual.” 

Mas nem sempre a vítima fala. Mas seu corpo pode dar pistas. A Childhood tem uma relação de comportamentos que podem indicar que esteja ocorrendo violência sexual. São sinais como alterações bruscas de comportamento, comportamentos sexuais incompatíveis com a idade, perda ou excesso de apetite. 

Não é preciso ter certeza de que a violência sexual esteja ocorrendo para denunciá-la. Basta a suspeita. 

Entre os canais de denúncia estão o Disque 100Você também deve ligar imediatamente para a Polícia Militar (190), em caso de flagrante, ou para a Polícia Federal (194), em casos de exploração sexual. Também pode procurar o conselho tutelar. É importante destacar, a denúncia pode ser anônima. 

Você pode ajudar a impedir que uma criança ou adolescente sofra violência sexual enquanto outra pessoa estiver lendo essa matéria. 

Por Frederico Kling