(Por Laura Gonçalves Sucena)
A crescente população de idosos no Brasil tem trazido novos desafios às políticas públicas que não acompanham esse o crescimento com propostas efetivas de atendimento e acabam deixando uma grande parte desse público desassistida. Neste cenário, o Crami que atende a um público encaminhado à entidade por situações de violações de direitos, percebeu o aumento dessa faixa etária e a necessidade de um atendimento diferenciado à pessoa idosa.
Assim nasceu o Balaio de Memórias, projeto que visa fortalecer vínculos familiares e de convívio e promover a autonomia e a sociabilidade, por meio do acolhimento e resgate de histórias de vida contadas a partir de suas experiências e lembranças, e gravadas em vídeo que depois são apresentadas ao núcleo familiar e ao idoso.
Percebendo os bons resultados do projeto criado em 2016, o Crami apresentou a experiência do Balaio de Memórias a outras instituições que trabalham com esse público e demais interessados na temática, que puderam assistir os vídeos, conhecer a metodologia do trabalho desenvolvido e trocar experiências.
Para Ana Lídia Puccini, líder do programa Acolhimento Afetivo da Fundação FEAC, o projeto traz uma nova forma de olhar para esse público, um respeito por suas histórias de vida, suas experiências e de como esses sentimentos e vivências podem contribuir significativamente nos processos de rompimento de ciclos de violência em que o idoso tanto pode ser vítima ou violador de direitos.
Mariana Barão, secretária do Conselho Municipal do Idoso de Campinas, explica que já há mudanças na visão que era centrada no idoso não autônomo que precisava ser institucionalizado. “A população idosa só cresce e hoje temos idosos ativos e participantes, o que nos faz ter um novo olhar para as políticas públicas. Projetos como o Balaio de Memórias são mecanismos de prevenção às violências, são intergeracionais e tiram o idoso do isolamento”, comentou
Memórias
Com uma câmera na mão, a equipe do Crami inicia o processo de acompanhamento com os idosos e sugere a elaboração de um documentário. “Propomos um bate-papo para que seja realizado uma escuta terapêutica. O projeto consiste na produção de um material audiovisual, em que os educadores entrevistam os idosos e juntos vão relembrando histórias e memórias de vida”, explicou o educador social Alexandre Alves.
“A intenção é acessar as memórias da infância desses idosos e resgatar as suas histórias por meio de conversas. Criamos um vínculo com eles e mostramos que é importante que sejam protagonistas de suas vidas, de suas histórias”, explicou o educador.
De acordo com Alexandre, o Balaio teve início com o diagnóstico dos profissionais do Crami que identificaram a necessidade de se dar voz aos idosos. “Durante os atendimentos, as duplas de psicólogo e assistente social perceberam que muitos idosos precisavam ser ouvidos e daí começamos o projeto. Logo surgiu a ideia de se fazer os documentários e colocamos a mão na massa”, falou.
Para a educadora social Thais Mello, a gravação do vídeo traz ao idoso a experiência de contar sua vivência. “Isso contribui para que ele seja o protagonista de sua história, afirmando a sua importância como ator da cultura oral na sociedade e contribuindo também para a melhora na qualidade de vida dessa população”.
“Nossa ideia foi muito bem aceita e os participantes gostaram de aparecer no documentário. É nítido que há o resgate da autoestima, um cuidado com imagem. E isso é muito bom para eles”, garantiu Thaís.
As lembranças e recordações vividas contribuem também para a capacidade de raciocínio, atenção e percepção. Além disso, o projeto acabou ainda auxiliando os idosos que apresentavam sinais de depressão. “Trabalhamos na perspectiva de que eles consigam se restabelecer para que possam falar de suas vidas com prazer. Houve casos que nem filmamos. Acabamos somente conversando, acolhendo e conversando”, disse Alexandre.
Carlos Silva, educador social e responsável pela produção e edição dos vídeos, conta que a ideia é valorizar as histórias. “Com a câmera e a edição podemos potencializar o que nos é passado. Essa voz ganha um novo tom e isso é muito importante para eles e para suas famílias”, garantiu.
Em alguns casos, as apresentações dos vídeos acabam virando uma festa, com a presença de familiares e amigos que podem compartilhar juntos os momentos contados pelos idosos.
Idoso na sociedade
A Organização Mundial de Saúde (OMS) conceitua a violência contra a pessoa idosa como o ato (único ou repetido) ou omissão que lhe cause danos ou aflição e que se produz em qualquer relação na qual exista expectativa de confiança.
Durante o encontro, as convidadas Caroline Cruz, psicóloga, e Marta Fontenele, pesquisadora de gerontologia da Unicamp, falaram da importância da fala e da escuta com os idosos e da urgência das políticas públicas para esse público.
Para a psicóloga, a conversa acaba ressignificando situações traumáticas. “Por meio da fala, é dada ao idoso a oportunidade de se conectar com ideias que produzem os sintomas. Assim, ele passa a ter uma nova compreensão desta memória. Supõe-se que, na medida em que a pessoa mantém ideias recalcadas de eventos ligados ao passado, este fato torna-se presente, uma vez que é constantemente atualizado através dos sintomas. Quando a reação é reprimida, o afeto permanece ligado à lembrança e produz o sintoma. Tudo que não é dito gera sintomas, por isso a fala e a escuta qualificada são tão importantes”, resumiu Caroline.
Já a pesquisadora, enfatizou a importância em se ter políticas públicas dirigidas aos idosos. “Hoje temos uma família com problemas de vínculos afetivos, econômicos, impactada com uma lógica de mundo veloz e competitivo. Então a família não pode ser a única responsável para garantir a proteção ao idoso. Precisamos de políticas públicas urgentemente”, disse.
Para Marta, o enfrentamento da violência com o idoso deve entrar na pauta de várias instâncias de discussão da sociedade, a partir da política de assistência social voltada à família, dos níveis de desigualdades e da violência urbana. “Os idosos são mais frágeis e têm menos recurso, voz e representatividade. O idoso é um ente social e vem sendo esquecido pelo Estado”, comentou.
“Campinas é uma das maiores cidades em arrecadação do país, mas lamentavelmente temos quase nada de políticas sociais em relação ao idoso. E temos apenas seis instituições de longa permanência que recebem algum tipo de financiamento. Para onde vão os idosos que não têm família suficientemente econômica para dar proteção a eles?”, indagou a pesquisadora.
Segundo Marta e Caroline, envelhecer com qualidade demanda mudanças na estrutura das cidades, na economia e em políticas públicas. O aumento da população idosa gera necessidades de mudanças na estrutura social para que as pessoas, ao terem suas vidas prolongadas, não fiquem distantes de um espaço social, em relativa alienação, inatividade, incapacidade física e dependência.
Enfrentamento a Violências
O Balaio de Memórias é um projeto de Crami, instituição que recebe apoio institucional da Fundação FEAC por meio do Programa Enfrentamento a Violências. O programa investe na mitigação dos impactos das violências e no enfrentamento para romper ciclos que as perpetuam com o objetivo de promover o bem-estar e a cultua de respeito, empatia, tolerância e paz.
Saiba mais: https://www.feac.org.br/enfrentamentoaviolencias/ e http://www.cramicampinas.org.br/