Adolescentes que praticaram atos infracionais estão sujeitos a medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Isso pode deixar estigmas que vão acompanhá-los pelo resto da vida, dificultando o rompimento de ciclos de violência e favorecendo a reincidência. O Sintonizando na Transformação tem como objetivo oferecer novas perspectivas de mundo para pessoas que já cumpriram ou estão acabando de cumprir medidas socioeducativas de prestação de serviços à comunidade ou liberdade assistida.

O projeto é realizado em parceria entre a Fundação FEAC e o Centro de Orientação ao Adolescente em Campinas (Comec), organização da sociedade civil que trabalha com adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. “Muitos adolescentes que terminam a medida socioeducativa continuam com dificuldade de serem inseridos na educação e no mundo do trabalho. Esse projeto tenta alcançar aqueles que continuam em situações vulneráveis, para alimentar neles a busca de um novo projeto de vida”, explica Juliana Vedovello, coordenadora do projeto.

Aline*, 29 anos, foi uma dessas adolescentes. Aos 13 anos, cumpriu medida socioeducativa por roubo. No final da adolescência, aos 17, reincidiu. “Uma passagem que você tiver já não consegue mais trabalho. Aí a gente entende a questão do porquê da reincidência. As pessoas podem tentar disfarçar, mas sempre vai existir um julgamento: será que mudou mesmo?”

Ela é um dos 20 participantes que estão no Sintonizando na Transformação desde o início do projeto, em abril de 2020. Os jovens recebem qualificação profissional em produção audiovisual, musical e de podcast, e têm direito a um auxílio financeiro de R$ 350, favorecendo a ruptura com o mundo infracional. Além disso, também estão em contato com outros 200 adolescentes que atualmente cumprem medidas socioeducativas no Comec, servindo como exemplos de que é possível construir outro percurso de vida.

“O grande ganho final é termos 20 pessoas completamente libertas do sistema infracional e outras 200 estimuladas a se afastarem. Assim, vamos ter contribuído para romper ciclos de violências, que recaem também dentro das famílias”, analisa Lívia Guimarães do Programa Enfrentamento a Violências, da FEAC.

Renda e comunicação transformadora

Um componente fundamental do Sintonizando na Transformação é o auxílio financeiro, que ajuda a atacar uma das grandes causas de reincidência: a necessidade de renda. Betina Barros, mestre em sociologia e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que, na maioria dos casos, o adolescente vincula o ato infracional à essa questão. Por isso, a bolsa-auxílio é um incentivo para que ele comece a buscar outros caminhos.

“Quando esses jovens começam a construir um projeto de futuro, a primeira grande dimensão que eles precisam dar conta é a renda. Um auxílio serve para o momento inicial porque, se ele tentar essa renda sozinho, – e ele vai tentar – as chances de cair em um emprego precário ou voltar para o mundo infracional é muito maior”, diz a pesquisadora.

Além de receber a bolsa-auxílio, os participantes são acompanhados por uma equipe técnica com a qual realizam semanalmente encontros e discussões sobre temas ligados à realidade que vivem, como o machismo, o preconceito racial, a guerra às drogas e a violência policial.

Eles também passam por uma formação em produção audiovisual, com a proposta de usar a comunicação como ferramenta de transformação social. Para isso, o Comec conta com um estúdio de gravação recém-inaugurado, onde os adolescentes e jovens têm a oportunidade de transformar os temas discutidos em vídeos, podcasts, músicas e entrevistas, materiais que são distribuídos na internet.

“É como se fosse um rap: eles contam a realidade deles e, a partir de suas histórias, buscam fazer intervenções para que outros jovens também desejem sair desse lugar de prática de infrações”, explica Lívia, da FEAC.

Comunicação como ferramenta transformadora

Os adolescentes e jovens que participam do projeto já produziram 17 beats autorais para os podcasts e áudios de poesia. Eles também gravaram 21 músicas de rap e funk. Em comum, todas as produções fazem uma leitura crítica do mundo.

As produções são divulgadas em canais de comunicação do projeto. Clique nos links abaixo e confira:

Youtube

Instagram: @sintonizando.na.transformacao

Podcast “Periferia contra o Sistema”

Podcast “A Voz da Visão”

 

Ciclos de violência

Todos os participantes do projeto vivenciam ou vivenciaram medidas socioeducativas de prestação de serviços à comunidade ou liberdade assistida: duas medidas cumpridas em meio aberto. Ou seja, quando os adolescentes não precisam ficar internados em uma instituição. Ambas estão previstas no artigo 112 do ECA e são aplicadas de acordo com a gravidade do ato infracional.

“O meio aberto é onde temos mais potencial de conseguir, em alguma medida, reestruturar a vida desse adolescente para que ele possa não voltar a cometer ato infracional, pois não o segrega do seu meio social”, explica Betina Barros.

No Sintonizando na Transformação, a maioria dos participantes são do sexo masculino, com média de idade de 17 anos. Pouco mais de um terço interrompeu os estudos e a grande maioria não está trabalhando (veja mais detalhes no infográfico abaixo).

São pessoas que, na sua maioria, já possuem histórico de ruptura com a escola e o trabalho antes de praticarem atos infracionais. Roubo e tráfico de drogas são as infrações predominantes.

“Existe um cenário de muito descaso com os adolescentes, há dificuldades no campo do lazer, da cultura, do esporte. São territórios muito precários, então o mundo infracional acaba sendo um ponto de fuga, uma possibilidade de projetar um futuro com alguma renda estável, ainda que isso não aconteça na prática”, explica Betina.

Dentre os motivos que dificultam o rompimento com ciclos de violência está o estigma que perdura após o cumprimento da medida. “Os adolescentes que passam pelas medidas socioeducativas ficam carimbados para sempre. Qualquer consulta que a empresa fizer – embora seja proibido, elas fazem –, estará lá a liberdade assistida”, destaca Lívia, da FEAC.

A passagem pelo mundo infracional é uma discriminação que se soma a outras, como a racial. No Brasil, quase 60% dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio fechado (semiliberdade e internação) são pretos ou pardos, segundo o Relatório da Pesquisa Nacional das Medidas Socioeducativas, realizado em 2018 pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS).

“É um conjunto de marcadores que vão se somando e faz com que a pessoa tenha seus direitos negados, por isso é difícil encontrar um caminho para recolocar o jovem dentro do mercado formal de trabalho. Ter passado pelo universo infracional é um ponto, mas ele já era carimbado por outros”, explica Lívia.

Multiplicando impactos

Ainda há muito trabalho pela frente, mas o objetivo principal está sendo alcançado: dentre os adolescentes participantes, 94% não reincidiram durante a execução da primeira fase do projeto, entre abril de 2020 e abril desse ano. Já a reincidência do sistema socioeducativo no Brasil é de 23,9%, segundo o estudo Reentradas e Reiterações Infracionais, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com dados colhidos entre 2015 e 2019.

A principal motivação que Aline teve para participar do projeto é justamente auxiliar adolescentes que se identificam com sua vivência: “Eu acho importante mostrar que existem mais pessoas que passaram pelas situações que eles enfrentam e que unidos a gente consegue fazer alguma coisa pra melhorar a situação.”

Ela questiona a negação de direitos que esses jovens vivem: “As pessoas da periferia são marginalizadas e não têm direitos básicos, a gente vê muita criança que já luta para sobreviver. Como você explica para uma criança que amanhã ela vai conseguir melhorar a vida, se hoje ela não tem condições de um estudo bom, lazer ou saúde?”

Na adolescência, Aline deixou os estudos, mas, em 2020, decidiu retomar e está concluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Agora, ela sonha trabalhar na área de serviços sociais. As medidas socioeducativas fazem parte do passado, que ela faz questão de não esquecer. Pelo contrário. Hoje, conta sobre ele com a cabeça erguida.

*Nome trocado a pedido da entrevistada.

Por Laíza Castanhari