(Por Ingrid Vogl)

“O dia em que eu tiver uma condição melhor, vou fazer um trabalho social para ajudar as pessoas que mais precisam”. O desejo de Ilza C. Barbosa, 81 anos, diz muito sobre a trajetória da baiana que saiu de Barreiras há 50 anos, com fome e em busca de uma vida melhor. Há cerca de 30 anos, ela iniciou o oferecimento de serviços de assistência social às famílias, crianças e adolescentes no Parque Itajaí em Campinas/SP.

Dona Ilza, como é conhecida na comunidade que pertence à região do Campo Grande, é presidente e fundadora do Centro Comunitário da Criança do Parque Itajaí e Região (Cecompi). A entidade, parceira da Fundação FEAC, foi criada em março de 1989 e hoje atende 150 crianças e adolescentes de 6 a 14 anos e 11 meses com atividades que envolvem artesanato, informática, esportes, leitura, além de 130 famílias com oficinas de corte e costura e atendimento pelo programa estadual Viva Leite.

Com olhar profundo e cativante, Dona Ilza é atenta a tudo e todos que entram constantemente na sede do Cecompi. Sempre no comando das atividades diárias da entidade, a senhora que adotou Campinas como seu lar se sente em casa no Centro Comunitário. Sua rotina é acordar às 5h, preparar o café para o marido e trabalhar até 16h na entidade, que fica a poucos metros de sua casa.

“Fico aqui mais que em casa e amo esse lugar. Em reuniões com a diretoria, sempre peço para que quando eu morrer, este trabalho não morra também. Quero ver o Cecompi crescer, mesmo quando eu não estiver mais aqui”, disse com firmeza.

Solidariedade

Até chegar à Campinas, em 1972, Dona Ilza e sua família tiveram uma trajetória de dificuldades e persistência para conseguir trabalho e comida na mesa. “Na Bahia, a gente só tinha uma roupa no corpo. Quando ela estava muito suja, íamos no rio, com sabão feito em casa em mãos. A gente pegava um saco de estopa cortado e cobria o corpo para entrar na água e lavar a roupa. Passávamos fome. Tinha vezes que minha mãe acordava a gente 11h da noite para dar comida, que era o horário que meu pai chegava com alguma coisa para nos alimentar”, lembrou.

Em 1969 Dona Ilza e o marido saíram de Barreiras direto para Goiânia/GO em busca de melhores condições de vida. “Moramos debaixo de um viaduto até meu marido encontrar um emprego e poder alugar um quarto. Depois de um tempo, ele foi transferido para Campinas, e como não tinha onde ficar, morou em um cômodo na favela da Vila Nogueira (Moscou). Depois de dois meses aqui, ele me buscou em Goiânia. Fomos morar em um barraco que chovia mais dentro do que fora”, recordou com bom humor.

Entre 1972 e 1985, Dona Ilza morou na Moscou, e lá começou seu trabalho assistencial fazendo e distribuindo sopa à comunidade. O trabalho deu origem ao Parque Social Iza, que existe até hoje com o nome de Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) para crianças e adolescentes de 6 a 14 anos, e é administrado pela Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (Seta).

Neste período, Dona Ilza teve a ajuda de diversas pessoas atuantes na área de assistência social em Campinas, como Odith Fernandes de Oliveira Fontanini, fundadora da Seta; Darcy Paz de Pádua, fundador da FEAC e então secretário municipal de Promoção Social (1982-1987) e de Paulo Freire, renomado educador, pedagogo e filósofo. “Dona Odith costumava dizer que eu fui uma das pessoas que deu continuidade ao trabalho social dela. O Dr. Darcy foi quem apoiou a criação das entidades e Paulo Freire me encorajou a me tornar uma liderança comunitária e falar em público. Ele era um educador rígido”, lembrou com carinho.

Cecompi

Em 1985 Dona Ilza chegou ao Parque Itajaí e lá se deparou com uma delicada situação. As famílias que moravam na Moscou foram transferidas para o conjunto habitacional Parque Floresta, que fica na mesma região. Segundo ela, como as famílias recém transferidas não tinham o que comer, elas saíam à noite pedindo comida de casa em casa no Parque Itajaí. Com isso, alguns moradores a procuraram e pediram para que ela fizesse algo por eles.

“Quando me procuraram e disseram que como ex-favelada, eu deveria dar um jeito naquelas pessoas com fome, topei o desafio e disse que daria um jeito. Me orgulho de ser favelada, porque foi a partir disso que consegui construir tudo isso aqui, com muita dignidade e sem usar drogas ou ser uma marginal. Chamei um grupo de mulheres e comecei a fazer esse trabalho, que mais tarde, originou o Cecompi”, disse.

A sede do Cecompi estava degradada quando Dona Ilza chegou ao local. “Quando cheguei aqui estava tudo quebrado. Trocamos a fechadura, colocamos papelão nas portas e janelas quebradas e começamos a cozinhar em 1989”, disse. O prédio onde funciona o Cecompi pertence à Companhia de Habitação Popular (Cohab) e a entidade assina termo de comodato que é renovado a cada dois anos para que o imóvel seja usado.

Dona Ilza lembrou que o grupo buscava lenha na mata próxima para alimentar o fogão que ficava no quintal de onde é hoje a sede do Centro Comunitário. “Fazíamos sopa três vezes por semana e distribuíamos para cerca de 300 pessoas entre crianças e adultos”, contou.

Mais tarde, entre 1992 e 1993, a entidade teve apoio de Fundações como do Banco do Brasil e do antigo Banespa, para a construção do barracão anexo, reforma e estruturação do espaço. Em 1994 houve o registro do estatuto do Centro Comunitário e o convênio com o governo municipal e a parceria com a Fundação FEAC.

Batalha constante

Ao longo dos anos, o trabalho do Cecompi foi se aprimorando e hoje o Centro Comunitário é referência para as famílias do entorno. Segundo Gizele Cardoso de Araújo, neta de Dona Ilza, muitos adolescentes que já foram atendidos pelo Cecompi hoje são formados em diversos cursos e seguiram carreiras profissionais. “Temos orgulho do rumo que vários jovens tiveram. Este é um importante trabalho social para a comunidade local. É uma luta de muitos anos e mesmo com a crise pela qual o país passa, estamos dando o atendimento com a mesma qualidade, carinho, amor e atenção de sempre. Isto é o mais importante: pensamos sempre na questão afetiva de nosso trabalho. Ficar sem isso é perder a nossa identidade”, disse, Gizele, que desde criança segue os passos da avó e naturalmente conduz seu legado.

Segundo Alann Scheffer Oliveira, assessor social do Departamento de Assistência Social da FEAC, a presença de uma liderança comunitária que seja referência e de fato oriente e estreite vínculos com as famílias é essencial. “A Dona Ilza, moradora antiga do bairro, se importando com as necessidades mais básicas das famílias daquele território, se movimentou para que efetivamente ocorresse mudanças nas vidas delas. Com cerca de trinta anos de fundação do Cecompi, a Dona Ilza representa muito para o bairro. Com certeza, ela é considerada como uma referência nas ações sociais da região do Parque Itajaí em Campinas”, avaliou.

Sempre correndo atrás de melhorias para o Cecompi, a equipe da entidade agora se mobiliza para conseguir a reforma e cobertura da quadra de esportes. Com a parceria constante de acadêmicos de cursos da Unicamp e PUC-Campinas, a entidade realiza diversas ações. “Estou aprendendo sempre. Este contato com estudantes de universidades é uma troca de experiências: eles nos ajudam e conhecemos o trabalho deles”, afirmou Dona Ilza.

E com toda a trajetória de dificuldades, desafios, conquistas e ricas experiências, Dona Ilza saiu da Bahia em busca de ajuda e acabou ajudando outras pessoas. “Nossa vida não foi fácil. Sei o que passei de fome e hoje graças a Deus tenho o suficiente para ajudar as pessoas. Isso aqui é minha vida, minha casa”, disse para logo em seguida recepcionar mais um membro da comunidade, com a atenção e carinho com que sempre tratou a todos.

Saiba mais sobre o Cecompi: cecompi.wordpress.com