Por Cimena Ferraz Passes*

Cresci numa família que sempre teve um olhar social. Desde a infância, fazia atividades voluntárias. Em Campinas já trabalhava no “Fazendo a Minha História”, da Associação de Educação do Homem de Amanhã (AEDHA), conhecida como Guardinha. No projeto, documentávamos as memórias das crianças que passavam pelo abrigo da instituição, crianças que, por motivos variados, precisavam ser afastadas de suas famílias biológicas provisória ou permanentemente. Em 2019, veio o convite para o Trilhar, um novo projeto que trabalharia com o preparo para a vida adulta e autônoma daqueles adolescentes que não retornaram a suas famílias ou não tiveram a chance da adoção.

Ao fazerem 18 anos, jovens que passaram muitos anos de suas vidas, senão toda ela, em uma instituição de acolhimento precisam sair e construir seu próprio caminho. O Trilhar tem como objetivo prepará-los para esta mudança e os auxilia a construírem um plano de vida. Para isso, conta com um grupo de mentores voluntários que se comprometem a acompanhar adolescentes entre 15 e 18 anos até pelo menos um ano após saírem do abrigo.

Eu prontamente me identifiquei com aquela proposta. A minha história de vida me trazia um olhar empático para aquele momento que esses adolescentes viveriam, ainda que muito distante da história familiar de cada um deles. Deixei o interior aos 17 anos para estudar em outra cidade. Foi marcante estar longe da família, ao mesmo tempo em que aprendia autonomia e independência, em um momento que precisava decidir o que faria da vida profissionalmente.

Mas qual preparo teriam adolescentes que raramente tiveram um olhar individualizado para aquela mudança de vida? O que eu vivi aos 17 eles viveriam em proporção infinitamente maior – eu tinha minha família, que sempre esteve ao meu lado, à distância de um telefonema.

Estamos falando de adolescentes que passaram suas vidas em instituições com regras de funcionamento que, apesar de se esforçarem para se aproximar das vivências e aprendizados de um lar, não conseguem replicar totalmente a vivência em família. Nada substitui um lar. E a criança acaba perdendo referências importantes que talvez sejam mais facilmente construídas em uma troca em família, como, por exemplo, fazer compras, cuidar das finanças, organizar momentos de lazer e planejar a mobilidade nos espaços da cidade. A convivência e o aprendizado social acabam sendo mais restritos até mesmo por questões de segurança dessas crianças.

Ao me deparar com essas histórias de vida nesses anos, entendi que o impacto do projeto iria muito além de dar a minha contribuição na construção dos caminhos desses adolescentes. Acabei por receber uma mentoria reversa importante na minha própria formação e aprendi muito sobre resiliência e superação.


 

O Trilhar se guia por quatro pilares temáticos, que os mentores precisam tratar com os jovens: moradia, trabalho, uso consciente do dinheiro e cidadania, que inclui a autonomia para circular na cidade e uso dos serviços por ela oferecidos. Os mentores precisam chegar aos encontros semanais com os jovens com algum tema já pensado para ser trabalhado. Mas estar no Trilhar significa se abrir ao imponderável. Como um adolescente vai querer conversar sobre finanças numa semana em que recebeu, depois de anos, a visita de seu pai? Esse é o assunto mais importante naquele momento, e o voluntário precisa estar aberto para ouvir, para acolher essas demandas de afeto. É fundamental primeiro criar uma conexão para então depois tratar dos assuntos práticos. Ao me deparar com essas histórias de vida nesses anos, entendi que o impacto do projeto iria muito além de dar a minha contribuição na construção dos caminhos desses adolescentes. Acabei por receber uma mentoria reversa importante na minha própria formação e aprendi muito sobre resiliência e superação. 

Ser mentora no Trilhar permitiu que eu saísse da bolha de privilégios na qual eu cresci. Os recursos e acessos que temos ao longo da vida deveriam ser proporcionais às nossas responsabilidades em devolvê-los à sociedade. Eu entendo isso como cidadania.


 

Quando comecei no Trilhar eu não sabia quem iria acompanhar. A equipe acabou por prolongar a minha parceria com uma jovem que eu já conhecia do projeto “Fazendo a Minha História”, a Rayane. Eu estava empenhada a mostrar para a Ray que ela era capaz de mudar o curso da própria vida, e que o fato de estar ali com aquele belo sorriso de sempre já a tornava uma grande vencedora. Um simples gesto pode mudar toda uma história de vida, de uma maneira capaz de quebrar ciclos de dor, de pobreza e de violência, impactando toda uma geração futura.  

Ser mentora no Trilhar permitiu que eu saísse da bolha de privilégios na qual eu cresci. Grata sempre aos acessos que tive, mas jamais alheia a uma sociedade tão desigual como a nossa. Os recursos e acessos que temos ao longo da vida deveriam ser proporcionais às nossas responsabilidades em devolvê-los à sociedade. Eu entendo isso como cidadania. 

Soa um pouco utópico, eu sei, mas ver a Rayane como uma das primeiras do projeto a ingressar numa universidade me permite sim ser uma sonhadora.  

*Cimena Ferraz Passes, 39, historiadora e administradora de empresas, é mentora voluntária do projeto Trilhar.