Em 2021, o Brasil tinha 7,3 milhões de lares sem internet e 28,2 milhões de excluídos digitais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O dado chama atenção para a urgência em democratizar o acesso às tecnologias, na tentativa de diminuir essa defasagem. No entanto, a pesquisa TIC Domicílios, feita pelo Nic.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), em 2022, revela que a questão se encontra estagnada desde o período pandêmico.
Ao mesmo tempo, o mercado de tecnologia só cresce no país. De acordo com levantamento da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e de Tecnologias Digitais (Brasscom), a expectativa é que, no Brasil, sejam geradas 800 mil vagas de emprego na área até 2025 para atender ao crescimento do setor. As principais demandas têm sido relacionadas à nuvem, Server Message Block (SMB) e cibersegurança.
Essa desigualdade de participação na chamada era tecnológica foi evidenciada na pandemia quando milhares de crianças e jovens tiveram seus estudos prejudicados pela falta de acesso à internet e equipamentos básicos adequados. Por isso, é importante pensar: era tecnológica para quem?
“As comunidades periféricas e/ou as pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social possuem um distanciamento grande com relação ao mundo tecnológico”, diz Rodrigo Correia, coordenador do Programa Juventudes, da Fundação FEAC. “As tecnologias digitais oferecem grandes possibilidades de contribuir para a redução das desigualdades sociais, mas para que isso de fato aconteça é necessário garantir acesso e oportunidades iguais para todos.”
“A gente tem muitas vagas, mas poucas pessoas se formando, porque a tecnologia não é vista como uma opção para todo mundo”, reforça Tamara Braga (leia mais sobre ela ao final do texto), gerente de projetos na Base Social, instituição parceira da FEAC.
Tamara explica que as iniciativas promovidas pela instituição são voltadas para a periferia. A instituição busca contribuir para formação de novos profissionais preparados para atuar na área e, além disso, os cursos também são uma oportunidade para pessoas que nunca tiveram acesso a esse conhecimento.
Tecnologia como ferramenta de inclusão e impacto social
Acompanhando a tendência de crescimento do mercado de tecnologia, as OSC têm se adaptado a essa nova realidade, seja incorporando softwares ao seu próprio modo de trabalho, seja pela criação de projetos formativos de inclusão digital.
É o caso da Base Social, que trabalha em conjunto com a FEAC em diversas ações, como a execução dos Projetos AWS re/Start – Amazon e o Rolê Tech. Ambos têm o objetivo de preparar os jovens para o mercado de trabalho tecnológico, dando suporte, instrução e a qualificação necessária.
“O que a gente tem tentado desenvolver dentro do Programa Juventudes [da FEAC] é o incentivo a projetos, através das organizações parceiras, que garantam acesso e conhecimentos necessários sobre o mundo da tecnologia, para todas as juventudes”, conta Rodrigo. A estratégia leva em consideração que, atualmente, os empregos exigem direta ou indiretamente noções mínimas das questões tecnológicas.
Segundo ele, a expectativa é que, futuramente, os jovens formados pelos projetos consigam acessar melhores oportunidades de trabalho, que consequentemente contribuirão na superação das situações de vulnerabilidade social e econômica.
“E inclusão é sobre você poder ter uma vida”, enfatiza Tamara. “A tecnologia me salvou em vários momentos. Foi com ela que eu tive a chance de ter uma vida de verdade, sonhar com coisas que realmente façam sentido e não sejam só para a minha sobrevivência.”
Iniciativa da Amazon abre portas para jovens
Em meio aos cursos de tecnologia apoiados pela FEAC e que têm foco na inclusão produtiva, o AWS re/Start é um dos principais. Desenvolvida pela Amazon Web Services, Fundação FEAC e Base Social, a iniciativa tem o objetivo de gerar impacto social por meio da formação profissional em computação em nuvem. A primeira turma se forma em janeiro de 2024, mas já existem planos para que o curso continue.
O programa é internacional e gratuito, podendo ser feito de maneira remota ou presencial. Ao todo, é composto por três trilhas, duas técnicas (Tecnologia e Fundamentos de Nuvem, e Serviços de Nuvem AWS) e uma socioemocional (soft skills). Na última, o aluno aprende sobre desenvolvimento de liderança, equipe, engajamento, comunicação, resolução de conflitos e elaboração de currículos.
Segundo Luciano Máximo, gerente sênior do programa da AWS, o estudante está sempre acompanhado de um instrutor ou instrutora ao longo da capacitação. Além disso, a AWS oferece um voucher de US$ 100 para o graduado ou a graduada do programa prestar o exame para a obtenção da certificação AWS Cloud Practitioner.
“Por se tratar de um projeto de caráter social, o programa tem o poder de adicionar diversidade ao mercado de tecnologia. Com mais mulheres, pessoas pretas e de outras raças e gênero, e mais pessoas vulneráveis do ponto de vista socioeconômico acessando oportunidades profissionais”, enfatiza Luciano.
Embora não seja pré-requisito, para acompanhar plenamente o curso é necessário ter noções básicas de tecnologia, principalmente no que diz respeito à computação em nuvem. De 155 jovens que demonstraram interesse em participar, apenas 30 apresentaram os critérios necessários para iniciar o curso.
“É por isso que a gente também precisa fomentar e garantir outras ações de mobilização, suporte e informação”, diz Rodrigo. Dentre os demais projetos de tecnologia apoiados pela Fundação FEAC, o Rolê Tech tem esse papel. “Ele vai justamente trabalhar essa lacuna para que, em uma segunda turma do AWS, esse número de inscrições consiga ser revertida em mais jovens matriculados”.
Curso oferece conhecimentos básicos para alunos da periferia
O programa Rolê Tech, realizado pela Base Social em conjunto com a FEAC, tem como objetivo ser uma etapa anterior ao AWS re/Start. Ele nasce da necessidade identificada em promover nos territórios que apresentam maior vulnerabilidade um despertar nas juventudes para as oportunidades e possibilidades que a área da tecnologia oferece.
“É como se, com o Rolê Tech, estivéssemos dando um passo para trás para dar vários para a frente”, conta Tamara. O projeto foi desenhado não só para mobilizar os alunos da periferia de Campinas, mas para viabilizar o acesso deles a um conteúdo que não requer um conhecimento prévio.
A meta é alcançar cerca de 5 mil jovens, chamando atenção para tudo que a tecnologia pode oferecer como possibilidades na construção de um projeto de vida. “Quando a gente fala de tecnologia, o jovem às vezes não consegue olhar para tudo o que ela pode proporcionar enquanto oportunidades de empregabilidade e renda”, diz Rodrigo, da FEAC.
Desses 5 mil jovens mobilizados, espera-se que pelo menos mil tenham interesse em fazer parte de uma trilha formativa e cerca de 400 se formem. Desses, espera-se que pelo menos 100 queiram passar por um processo de mentoria e direcionamento para as oportunidades de estudo ou trabalho na área da tecnologia da informação. A perspectiva é que eles obtenham esse direcionamento e possam fazer outros cursos, como o próprio AWS re/Start, da Amazon, pensando em se especializar cada vez mais na área.
“Não é só sobre colocar o jovem no curso, mas quais outras oportunidades ele já pode acessar para começar a ter contato ou colocar em prática aquilo que ele vem aprendendo”, destaca Rodrigo. Como resultado do projeto AWS re/Start, dois alunos venceram o Hackaton organizado pela Ozipa Criativa no final de outubro. Hackaton é um evento que reúne programadores, designers e outros profissionais ligados ao desenvolvimento de software para uma maratona de programação, cujo objetivo é desenvolver um software ou solução tecnológica para um fim específico.
Hackaton da Ozipa promove inclusão a pessoas com deficiência
Nos dias 19 e 20 de outubro, Campinas foi palco da 1ª edição do Corrida Acesso, hackaton focado no desenvolvimento de tecnologias para solucionar questões envolvendo pessoas com deficiência visual. O evento foi realizado pela Ozipa Criativa, em parceria com o laboratório Mescla, PUC-Campinas, Instituto Campineiro dos Cegos Trabalhadores, e contou com o apoio da Fundação FEAC.
O desafio lançado aos grupos foi a dificuldade que pessoas com deficiência visual enfrentam em se locomover pela cidade, a pé ou por transporte público, devido à falta de acessibilidade e recursos de mobilidade urbana. A solução apresentada pelo grupo vencedor foi o desenvolvimento de um aplicativo que, além de guiá-la pelas ruas – como um GPS, por meio de comandos de voz e utilização de dados públicos –, também sinaliza possíveis buracos, melhores rotas, locais de referência, em que ponto descer e o tempo para chegar ao destino.
A tecnologia é totalmente interativa. Os usuários podem acrescentar indicações novas, deixando o software sempre atualizado. Outra funcionalidade é uso de pontuações para avaliar os estabelecimentos a partir de critérios de acessibilidade. A ideia é que os locais melhor classificados possam fazer anúncios no aplicativo, tornando-o rentável.
Por ser voltado a pessoas com deficiência, o app também explora outros sentidos, como o olfato, já que os usuários podem apontar, por exemplo, que, ao virar a esquina, é possível sentir o aroma da panificadora e isso significa que você está a 5 minutos do seu destino.
Dois alunos do Rolê Tech, sendo um deles também do curso AWS re/Start, faziam parte do grupo vencedor e propuseram a solução ao lado de outros jovens. A equipe levou um cheque de R$ 10 mil para casa: R$ 5 mil foram doados ao Instituto Campineiro dos Cegos Trabalhadores e o restante foi repartido entre os integrantes.
Luiz e Luily contam suas experiências no hackaton
O sentimento foi unânime: Luiz Prudente e Luily Cardoso foram tomados por um misto de orgulho e felicidade ao vencerem o hackaton. Antes de ingressarem nos cursos da Base Social, nenhum deles tinha ideia de que seguiria pelo caminho da tecnologia e, hoje, é só o que se veem fazendo.
O primeiro contato de Luiz com a tecnologia foi em cursos de informática e digitação quando ainda estava na escola, em que adquiriu conhecimentos básicos que foram somados à breve experiência que teve dentro de casa a partir de um computador antigo. Aos 22 anos, o estudante de Sociologia conta que se sentia infeliz na área, mas que só começou a estudar tecnologia de verdade após ter visto um anúncio da Base Social no Instagram, ainda durante a pandemia.
Começou com o curso de design de produto, ingressou no Rolê Tech, arrumou um estágio em tecnologia e desde então não parou mais. “Eu consegui pensar em outras possibilidades. No projeto, convivia com outras pessoas que também sonhavam além do que está posto para a gente”, relata.
Para o jovem, ganhar o hackaton foi uma virada de chave em sua vida. “Eu senti que eu estou no mesmo nível de pessoas que eu vejo de longe e admiro. Foi muito legal essa questão de desenvolvimento intelectual e da autoestima”, conta. Ele diz que a melhor parte foi conseguir trazer a tecnologia para o dia a dia, apresentando um projeto de impacto para pessoas com deficiência visual.
Com Luily, não foi diferente. Apesar de ter sido desencorajado desde jovem, seu objetivo sempre foi estudar e buscar pelas oportunidades, já que elas não apareciam. Ele diz que o sentimento era de que as pessoas estavam constantemente o empurrando para qualquer curso, mas nunca nada relacionado à tecnologia, como se esta área não fosse para ele. “Ninguém quer ver preto crescendo. Eles só vão acreditar que você é capaz depois que você tiver conquistado, depois que você estiver em cima de um palco com um cheque de R$ 10 mil na mão”, diz.
Seu objetivo é, cada vez mais, abrir espaço para que outras pessoas pretas possam estudar tecnologia. “Tem sido uma das melhores experiências da minha vida, mas é um espaço que eu não sabia que era meu”, conta.
Atualmente, com dois anos de Base Social e passagens no Rolê Tech, AWS e Quebrada em Movimento – curso da Casa Hacker, também parceira da Fundação FEAC –, Luily tem chegado cada vez mais longe em sua carreira. Aos 20 anos, o jovem comemora o fato de ter vencido não só o hackaton, mas as adversidades. As iniciativas e as instituições o ajudaram em suas fases mais difíceis, em que sequer tinha tempo ou estava bem para continuar estudando.
Mesmo após o evento, os jovens mantêm contato e desejam, em breve, colocar o projeto do aplicativo em prática. Tudo isso a fim de transformarem efetivamente a realidade de muitas pessoas, assim como aconteceu com eles, por meio da tecnologia.
Para Tamara, tecnologia trouxe nova perspectiva de futuro |
Além de ser gerente de projetos da Base Social, Tamara Braga é engenheira química, pós-graduada em sustentabilidade, liderança em inclusão e acessibilidade digital e fundadora da empresa DiverCidade. Se hoje consegue ter uma vida mais confortável, ela atribui ao fato de sempre ter se dedicado aos estudos e, principalmente, à tecnologia, por mais que não tivesse muitas oportunidades na infância. A jovem preta, bissexual e neurodivergente (condição em que o funcionamento cerebral difere significativamente do que é considerado típico ou neurotipicamente esperado) é nascida em uma comunidade no bairro de Honório Gurgel, no Rio de Janeiro, e sempre soube que seu caminho não seria fácil. Ainda criança, sofreu com a perda do pai e viu de perto as dificuldades financeiras assombrarem a família. Foi nos estudos que ela viu uma oportunidade de mudar a sua realidade e construir uma vida que ela nem sabia ser possível. “Sinto que eu acabei entrando na [área de] diversidade para poder abrir essas portas para outras pessoas que têm um passado parecido com o meu”, revela Tamara. E foi esse sentimento que a guiou em toda a sua carreira, inclusive no seu processo de identificação com a Base. Ela conta que se via naqueles jovens fazendo os cursos. “Somos muito desmotivados o tempo inteiro, mas o conhecimento é a única coisa que ninguém consegue tirar da gente”, diz a jovem. “Nós mostramos que existe representatividade e a possibilidade de mudar de vida. Conversamos de igual para igual, falando que, se a gente conseguiu chegar até aqui, eles também conseguem.” |