O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023, “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, mirou em um assunto pouco falado, mas praticado diariamente: o trabalho de cuidado.

Também conhecido como “trabalho invisível”, o ato de cuidar não é remunerado e é, na maior parte das vezes, exercido pela mulher. Ele envolve a realização de tarefas domésticas, como limpar a casa, cozinhar, lavar as roupas, e cuidados com pessoas, como levar ao médico, dar banho, vestir e alimentar (filhos, pais ou outros).

A criação de filhos também é um trabalho de cuidado invisibilizado – e a mulher ainda é vista como a principal responsável pela criança. No Brasil, mais de 11 milhões de mães criam os filhos sozinhas, sem a ajuda do pai, segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Cuidar dos filhos é um papel que também deve ser cumprido pelo homem. No entanto, essa participação ainda é pequena ou às vezes inexistente. O número de crianças que não são reconhecidas pelos pais vem crescendo nos últimos anos. (Saiba o que é reconhecimento de paternidade no box)

Em 2022, de janeiro a agosto, cerca de 105 mil certidões de nascimento foram registradas sem a identificação de paternidade, segundo dados apurados pelo canal de televisão GloboNews por meio do Portal de Transparência do Registro Civil. No mesmo período deste ano, esse número subiu para 110.716. Por dia, são realizados quase 500 registros sem o nome do pai no país.

Em Campinas, dos 14.695 nascimentos até novembro de 2023, 615 crianças têm apenas o nome da mãe na certidão de nascimento, de acordo com o Portal de Transparência do Registro Civil. Nos últimos oito anos, 4,8 mil crianças não receberam o nome do pai no documento, segundo a Associação de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen).

Para enfrentar esse cenário na cidade e assegurar direitos da criança e do adolescente foi criado o Projeto O Estabelecimento do Direito à Filiação Paterna: uma Experiência no Satélite Íris em Campinas-SP. Ele foi conduzido pelo Observatório da Infância e Adolescência (OIA), do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp (Nepp), em parceria com a 19ª Promotoria da Infância e da Juventude da Comarca de Campinas e apoio da Fundação FEAC.

“A FEAC decidiu apoiar o projeto com base em uma compreensão profunda da importância da criança e do adolescente acessarem o direito do reconhecimento da filiação paterna. E também para responsabilizar legalmente o pai biológico, reduzindo a sobrecarga da mãe e dos adultos cuidadores”, fala Stelle Goso, líder do Programa Infância em Foco da FEAC.

O investimento da FEAC neste projeto foi impulsionado por solicitação da 19ª Promotoria da Infância e da Juventude de Campinas, que emitiu Portaria de Instauração de Procedimento Administrativo de Acompanhamento das ações realizadas por atores do Sistema de Garantia de Direitos para a efetivação do direito ao estado completo de filiação de crianças e adolescentes do Município de Campinas.

Mais da metade das famílias do Cidade Satélite Íris é chefiada por mães solo

O Projeto O Estabelecimento do Direito à Filiação Paterna: uma Experiência no Satélite Íris em Campinas-SP foi inspirado em uma iniciativa de reconhecimento de paternidade de Mogi Guaçu (SP). O bairro Cidade Satélite Íris foi escolhido para ser o piloto em Campinas.

O primeiro passo foi selecionar as crianças e os adolescentes que não tinham o nome do pai na certidão de nascimento. “A gente queria identificar essas crianças e conhecer o perfil, os motivos pelos quais a criança não teve o reconhecimento paterno e incentivar o reconhecimento, principalmente o reconhecimento espontâneo”, explica Juliana Villalba, coordenadora do OIA e uma das pesquisadoras do projeto.

Para isso, foi realizada uma busca ativa em sete escolas da rede de ensino público do bairro. A busca identificou as informações por meio da matrícula escolar, que contém os dados da certidão de nascimento. A equipe se reuniu com os diretores das escolas e planejou uma agenda de visitas para sensibilizar as mães.

Mas e as crianças e os adolescentes que estão fora da escola? Para alcançá-los, o projeto mudou um pouco a estratégia e fez busca ativa no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e em duas Organizações da Sociedade Civil (OSC), Projeto Gente Nova (Progen) e Casa Hosana, unidade da Casa de Maria de Nazaré. A equipe visitou o Cras e as OSC em diferentes horários e ações para encontrar e convidar o maior número possível de mães e responsáveis interessados no reconhecimento.

As mães e os responsáveis que aceitavam participar do projeto eram entrevistados e preenchiam um formulário respondendo se queriam o reconhecimento da paternidade dos filhos ou não. No total 34 famílias foram entrevistadas: 19 do Cras, 12 das escolas e três das duas OSC. A equipe observou que predominam famílias numerosas, com cinco ou mais membros, 56% são mães solo e vivem apenas com os filhos e 76% dos filhos têm irmãos de pais diferentes.

Confira mais dados obtidos:

  • 35% das crianças estão na primeira infância, 35% entre 6 e 12 anos e 29% adolescentes, de 13 a 18 anos.
  • A maioria das mães tem baixa escolaridade e não exerce atividades remuneradas.
  • Menos de 30% das famílias possuem casa própria, 61,8% pagam aluguel.
  • Quase 59% das famílias têm renda mensal familiar de no máximo um salário mínimo.
  • Mais de 70% das famílias recebem o benefício do Programa Bolsa Família.

Política pública para o reconhecimento de paternidade em Campinas

Durante a execução do projeto, a equipe percebeu que as mães e os responsáveis têm um forte vínculo com o Cras. A busca ativa na rede socioassistencial e o contato in loco foram fundamentais para alcançar famílias que queriam o reconhecimento de paternidade, mas não sabiam onde consegui-lo nem quais seriam os primeiros passos. “A gente chegou à conclusão que, por meio do Cras, das redes de assistência, é possível buscar mais casos”, diz Juliana Villalba.

Por isso, a ideia é que o projeto se torne uma política pública. Junto da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, a equipe elaborou um formulário de indicação de paternidade e orientações para que a Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos o aplique na rede socioassistencial de Campinas.

O objetivo é que os profissionais utilizem esses materiais. Na prática, o Cras ou a OSC disponibiliza o formulário à família que deseja o reconhecimento de paternidade e a mãe ou o(a) responsável poderá agendar o atendimento diretamente com a promotoria.

Por que isso acontece?

São vários os motivos que explicam a ausência do registro de paternidade na certidão de nascimento e, por consequência, o afastamento do pai na vida do filho ou da filha. Entre eles a falta de vínculo afetivo, negação da paternidade por parte do pai, término de relacionamento com a mãe durante a gestação, falecimento do pai e registro em nome do padrasto.

A coordenadora do OIA diz que não é vontade da mãe separar seu filho do pai, mas existem situações em que é preciso intervir por questões de segurança – como o envolvimento do pai com atividades ilícitas e criminosas, casos de violência doméstica e uso abusivo de substâncias químicas.

Uma adolescente atendida pelo projeto se afastou do pai pois ele era agressivo e dependente de substâncias psicoativas. Quando ela nasceu, ele destruiu a Declaração de Nascido Vivo (DNV), um documento necessário para a certidão de nascimento e ela ficou sem registro por quatro anos. A mãe, que morava em outra cidade, se mudou para Campinas e conseguiu registrar a filha. Hoje, mãe e filha desejam o reconhecimento da paternidade.

“A pesquisa evidenciou que a vulnerabilidade dessa população vai além de questões relacionadas ao trabalho formal, aposentadorias ou infraestrutura habitacional. Ela está intrinsecamente ligada à fragilidade dos vínculos familiares e comunitários. Assim, o reconhecimento de paternidade emerge como uma estratégia para fortalecer esses laços próximos, contribuindo para a estabilidade e o bem-estar geral”, fala Stelle Goso.

Os impactos da ausência da figura paterna

Mais de 1,5 mil pessoas tiveram a paternidade reconhecida na certidão de nascimento nos últimos oito anos em Campinas, segundo a Associação de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). O desejo de adicionar o nome do pai no documento não se dá necessariamente pela oportunidade de contato com a família paterna, mas sobretudo pela sensação de pertencimento.

Ao longo da pesquisa, a equipe ouviu vários relatos de crianças e adolescentes que sofriam bullying na escola e de mães que vivenciam episódios desconfortáveis por causa da ausência da paternidade no documento. Uma jovem de 16 anos contou sobre a vez em que levou seu filho a uma consulta e a pediatra perguntou a ela “você só é filha da mãe? Não tem pai? É filha de chocadeira?”.

“Minha filha sente muito pelo pai não querer contato com ela. Não entende por que com os outros filhos dele ele tem um bom relacionamento e convivência. Sofre discriminação na escola e em muitos outros lugares por não ter o nome do pai”, relatou a mãe da garota.

O reconhecimento de paternidade aproxima os laços familiares

No final do projeto, foram 11 reconhecimentos espontâneos de paternidade e quatro solicitações de DNA.

Cinco mães das 34 famílias entrevistadas queriam o reconhecimento de pais que eram falecidos. Também houve outros casos, como adoção do filho do cônjuge e solicitação de guarda dos netos por parte da avó. Todos foram encaminhados à Defensoria Pública ou ao escritório de práticas jurídicas da Universidade Paulista (Unip), parceira do projeto.

O reconhecimento paterno trouxe mudanças positivas no cotidiano, na dinâmica familiar e no bem-estar das crianças e dos adolescentes. As mães notaram que seus filhos se sentem mais seguros e acreditam que não haverá mais episódios de discriminação na escola e em outros lugares.

Mesmo que o reconhecimento nem sempre signifique o início de um contato com a família paterna, houve casos em que o pai decidiu se aproximar do filho e estar presente, depois de um longo período afastado. Duas crianças com o pai preso também tiveram a oportunidade de estreitar os laços. Por meio do projeto Conexão Familiar, da Secretaria da Administração Penitenciária, eles podem trocar mensagens, fotos e fazer videochamadas.

“Dois pais presos, encarcerados, conseguiram fazer esse reconhecimento que para eles era muito importante. Uma mãe falou que isso foi muito importante para ela, o filho e o pai e que hoje eles podem conversar”, conta Juliana Villalba.

“O reconhecimento paterno desempenha um papel crucial na promoção do bem-estar emocional das crianças. Garantir o direito à identidade e ao pertencimento contribui para o fortalecimento dos laços familiares”, diz Stelle Goso.

Como é o reconhecimento de paternidade

Todos, especialmente crianças e adolescentes, têm o direito de saber sobre sua paternidade. É um direito garantido na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Civil.

O reconhecimento pode ser realizado de forma espontânea ou por decisão judicial. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se o filho for menor de 18 anos, a mãe pode indicar o suposto pai em um cartório de registro civil e solicitar o procedimento. Se o pai estiver presente, a inclusão do nome e a emissão do novo documento são feitas na mesma hora.

E se o pai quiser reconhecer o filho, ele pode ir ao cartório com a cópia de certidão de nascimento e dar início ao registro. A conclusão do procedimento dependerá do filho, se ele tiver 18 anos ou mais, e da mãe, no caso de filhos(as) menores de 18 anos.

Se o suposto pai não quiser reconhecer, a mãe ou o filho podem procurar a Justiça, por meio do cartório, e será iniciado um processo de investigação que dura 45 dias. Ele é convocado a se manifestar em juízo sobre a paternidade. Caso não se pronuncie ou possua dúvidas sobre a relação familiar, o pedido é encaminhado ao Ministério da Saúde e é feito um exame de DNA.

O reconhecimento de paternidade pode ser realizado após a morte do suposto pai. O procedimento também não se limita ao caráter biológico. Padrasto ou um responsável que exerça função de pai também pode ser reconhecido.

 

Por Pietra Bastos