Os direitos da criança e do adolescente foram estabelecidos tanto pela Constituição de 1988 quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Naquela época, tão importante quanto nomear esses direitos, até então inexistentes, foi criar um sistema de garantias capaz de efetivá-los, promovendo-os, fiscalizando sua implementação e reparando sua violação, o que leva a uma proteção integral.

Esse sistema tem três eixos de atuação: promover e defender direitos, e controlar essas ações de defesa e promoção. Dele fazem parte diversos órgãos atuando em rede, alguns já existentes, como o Poder Judiciário e os Ministérios Públicos, outros criados especialmente naquele momento, como os conselhos tutelares e os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (veja mais na tabela abaixo).

Mais de 30 anos depois, o saldo da efetivação é ambíguo. Uma frase da líder do Programa Primeira Infância em Foco, da Fundação FEAC, Juliana Di Thomazo, resume bem a situação atual do Sistema de Garantia de Direitos. “Eu sou muito otimista enquanto historiadora. Mas sou pessimista enquanto assistente social. Na perspectiva histórica, é uma grande conquista. Porém, ainda há grandes fragilidades nele.”

A FEAC, por sinal, tem projetos de promoção de direitos de crianças e adolescentes distribuídos por nove de seus 10 programas de ação para tentar justamente dar conta da complexidade da questão. São iniciativas que lidam com temas como educação, acolhimento afetivo, fortalecimento de vínculos, lazer, inclusão escolar, entre outros.

Pioneirismo

Um dos principais avanços do sistema foi pensar na ideia de rede numa época em que esse tipo de atuação ainda era muito incipiente.

O promotor de Justiça Paulo Afonso Garrido de Paula participou ativamente das discussões em torno da criação do ECA, e afirma que, até aquele momento, “o judiciário era tradicionalmente o sistema no qual os direitos se efetivavam. Mas como uma criança ou um adolescente poderia acessá-lo? Como dar conta da multidisciplinariedade envolvida na garantia de seus direitos?”, questionava-se na época.

A resposta, segundo Paulo, foi justamente criar um sistema no qual o judiciário seria apenas uma parte. Era preciso também trazer atores como a administração pública, a sociedade civil e entidades de assistência social para lidar com a garantia de direitos.

O promotor aponta vários ganhos com essa estratégia, como uma maior sensibilização e especialização do judiciário, com a criação de varas especializadas, para lidar com questões relacionadas à criança e ao adolescente, e a circulação dentro da rede de novos conhecimentos, habilidades, sensibilidades e informações mais amplas sobre o usuário.

“É impressionante, por exemplo, a capilaridade dos conselhos tutelares e seu papel de sistema popular de validação de direitos. Eles foram fundamentais ao combate à violência e ao abuso contra crianças e adolescentes”, acrescenta Paulo.

Falhas no sistema

A complexidade do Sistema de Garantia de Direitos é justamente a fonte de seus atuais problemas. Apesar de ter sido pensado para lidar com a multidisciplinariedade envolvida nos direitos de crianças e adolescentes, a realidade acaba sendo uma atuação muitas vezes compartimentalizada de cada órgão da rede.

“Dentro do poder público, por exemplo, várias secretarias lidam com temas relacionados a esses direitos, só que muitas vezes fazem isso sem coordenação. Cada órgão quer ser dono de sua política. Isso é o oposto da intersetorialidade necessária para lidar com crianças e adolescentes”, aponta Juliana, da FEAC.

Isso acaba criando problemas com o fluxo de atendimento. Consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e especialista em proteção de criança e adolescente, Benedito Rodrigues dos Santos aponta, por exemplo, que a falta de garantia de atendimento psicoterapêutico para crianças e adolescentes, fundamental para quando sofrem violências, é um exemplo disso.

“Os Centros de Referência da Assistência Social (Cras) não são responsáveis por esse atendimento. Já os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são especializados em saúde mental em geral e não fazem esse atendimento específico para crianças e adolescentes”, diz Benedito.

Além do problema de coordenação, o consultor do Unicef diz que há também diferentes graus de especialização de cada órgão participante da rede para atuar no sistema de garantias e aponta problemas principalmente no sistema de justiça e no de segurança.

“As áreas criminais da justiça estão muito pouco sensibilizadas para lidar com a criança enquanto vítima ou testemunha de violência. Elas não se sentem parte desse Sistema de Garantia de Direitos. Também há poucas delegacias especializadas em tratar com esse público. No Brasil, há cerca de 180. Em São Paulo, não há nenhuma”, diz Benedito.

Isso gera, segundo o consultor, outro grave problema no fluxo de atendimento: a revitimização da criança e do adolescente vítima de violência, um problema que ainda ocorre mesmo existindo uma lei falando sobre a necessidade de uma escuta especializada para esses tipos de caso. “Eles acabam tendo de contar várias vezes, para diferentes órgãos de atendimento, sua história, revivendo essa violência”.

Benedito também ressalta que tanto os órgãos de justiça quanto os de segurança não estão presentes em todos os municípios do país, o que prejudica a criação de um Sistema de Garantia de Direitos em muitas cidades.

Soluções possíveis

Juliana aponta duas questões principais que precisariam ser resolvidas para melhorar o sistema de garantias. Por um lado, cobra mais verbas para que um sistema tão complexo possa funcionar. Por outro, também cita a necessidade de melhorar a coordenação da rede.

“O sistema tem de fazer um diagnóstico da situação local para então definir metas e investimentos de acordo com ela. Isso passa pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente ter recursos para aplicar e também criar, por exemplo, um plano decenal de ação”, diz ela.

Já o promotor de justiça Paulo Garrido ressalta a necessidade de um olhar mais sistêmico para os problemas que assolam crianças e adolescentes. “Nós avançamos muito pouco, por exemplo, na transformação das favelas em comunidades pacificadas, nas quais sejam oferecidas atividades esportivas e culturais, com serviços de saúde e educação. É uma questão estrutural.”

A análise de Paulo se relaciona com a ideia de prevenção trazida por Benedito, para que não se sobrecarregue o Sistema de Garantia de Direitos. “Temos de lidar com questões estruturantes que são fontes de violência, como o machismo e o racismo. A maioria das crianças vítimas de violência são negras. Também não existe, por exemplo, uma política de prevenção à violência dentro de casa, espaço ainda tido como de domínio exclusivo da família”, afirma o consultor do Unicef.

Entre avanços e necessidades de ajustes no sistema, Paulo encerra ressaltando uma conquista fundamental: “Arrisco dizer que hoje ninguém desconhece que as crianças têm direitos.”

Conheça os eixos de atuação do Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente

Promoção 

Eixo responsável por transformar em prática o que está na lei. Inclui todos os órgãos e profissionais responsáveis, por exemplo, por prover educação, saúde, saneamento básico, moradia digna. 

Defesa 

Eixo relacionado ao acesso à justiça e proteção legal de direitos. Inclui o Poder Judiciário, os Ministérios Públicos, as polícias, os conselhos tutelares, as Defensorias Públicas, entre outros. 

Controle 

Eixo relacionado ao monitoramento das ações de defesa e promoção, e também de elaboração de políticas públicas. Inclui órgãos como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, conselhos setoriais (como de educação, saúde e assistência social) e também pelo Poder Judiciário, pelos Ministérios Públicos e pelas Defensorias Públicas entre outros. 

Por Frederico Kling

Revista Narrativa Social 10 - Fundação FEAC

Edição 10 – Direitos da criança

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• Coordenação ainda é desafio na garantia de direitos de crianças e adolescentes
A importância do direito de brincar para o desenvolvimento das crianças
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