Em 2021, públicos mais vulneráveis estiveram mais expostos aos efeitos da continuação da pandemia de Covid-19. Mulheres e meninas, por exemplo, sofreram a chamada “pandemia invisível”, termo usado pela diretora-executiva da ONU-Mulheres para descrever o cenário de violência doméstica, que se agravou com o isolamento social.
“Uma mulher ou criança que já era vítima de violência doméstica passou a conviver muito mais com o autor dentro de casa”, aponta Natalia Valente, líder do Programa Enfrentamento a Violências, da FEAC.
A diminuição do contato com redes de proteção, como escolas e serviços de saúde, foi um fator agravante. No caso das crianças, muitas vezes as violências são percebidas no cotidiano por profissionais da educação. “O isolamento causou uma desproteção maior dessas pessoas. A violação de direitos, que já é subnotificada, deixou de ser denunciada”, diz Natalia.
Juliana Di Thomazo, líder do Programa Primeira Infância em Foco, alerta para outras consequências do fechamento de escolas: “Essa realidade impactou tanto na nutrição das crianças – a alimentação escolar é a única fonte nutricional para muitas delas –, quanto nos cuidados em saúde e no próprio desenvolvimento global.”
Como a Fundação FEAC trabalhou durante esse ano para mitigar efeitos tão desafiadores? Nesta quarta e última matéria de retrospectiva sobre 2021, confira as ações do Programa Primeira Infância em Foco, que lida diretamente com o desenvolvimento integral das crianças. Veja também os destaques do Enfrentamento a Violências, que atua no combate de todas as formas de violências.
Esses dois programas fazem parte da dimensão de trabalho Empoderando População Vulneráveis.
As crianças nas escolas
Ao longo do segundo semestre, as aulas presenciais começaram ser retomadas. Mas, até então, o afrouxamento de vínculos das instituições com as crianças e suas famílias foi um dos maiores desafios do Programa Primeira Infância em Foco.
Nesse cenário de isolamento e incerteza, o programa enxergou uma oportunidade: investir na formação de qualidade dos profissionais de educação infantil. O percurso formativo Novo Olhar foi realizado entre março e agosto, em parceria com o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp.
Diretores, coordenadores pedagógicos e professores de 33 escolas de Campinas participaram da formação. Por meio de grupos de estudo, mais de 400 profissionais foram inspirados a pensar em propostas pedagógicas de intervenção na escola, na busca por um ambiente acolhedor e centrado na escuta da criança.
O projeto resultou em uma mostra exibida na Casa do Lago, na Unicamp, entre os dias 1 e 3 de dezembro, onde os profissionais compartilharam suas novas visões e propostas.
Outro projeto desenvolvido durante a pandemia foi o Novo Olhar para os Espaços Escolares. Na retomada das aulas presenciais, como contribuir para que as escolas aprimorem seus espaços físicos?
A FEAC lançou um edital para seleção de cinco projetos de organizações da sociedade civil (OSC) parceiras da FEAC que atuam com educação infantil. Os projetos deveriam propor a criação de ambientes ao ar livre ou mais verdes para as crianças.
“Trabalhamos com o conceito de ‘desemparedamento da infância’, que possibilita espaços mais naturais nas escolas, ambientes mais arejados e com iluminação natural”, explica a líder Juliana.
A Creche Mãe Cristina foi uma das selecionadas, com a proposta de reformar um dos corredores da instituição. As paredes vão ser substituídas por vidros, e o contrapiso de cimento, por um chão de grama.
“As crianças estão perdendo essa vivência ao ar livre e a nossa proposta é resgatá-la”, contou Kety Nicolini, orientadora pedagógica da instituição. A previsão para 2022 é que as reformas das cinco organizações se concretizem e, no segundo semestre, um novo edital seja lançado.
As crianças na comunidade
A escola é um dos eixos do programa Primeira Infância em Foco. Mas, quando falamos em crianças, a responsabilidade é de todos. “Elas se desenvolvem nos diversos contextos em que estão inseridas. Além da família e da escola, a comunidade onde a criança vive é de fundamental importância para o seu desenvolvimento”, analisa Juliana Di Thomazo.
Em setembro, a FEAC deu início ao projeto Caminhos do Brincar, que visa a transformação de territórios vulneráveis em ambientes protegidos e que proporcionem o brincar seguro às crianças. O trabalho é realizado em rede, mobilizando organizações locais, o poder público, as crianças e a comunidade.
Os bairros Satélite Íris e o Buraco do Sapo foram escolhidos para receber o projeto-piloto. Na atual fase, a equipe de campo vai semanalmente até os bairros para realizar atividades lúdicas com as crianças, a fim de compreender o território sob a perspectiva delas. “Lançando mão de estratégias como vídeos e outros registros, o tecido comunitário vai se fortalecendo”, explica Juliana.
Em 2022, o projeto vai ser materializado na construção de um espaço de brincar, levando em consideração os sonhos e necessidades das crianças de cada região.
Integrando a rede de proteção
Para o cuidado e proteção das crianças, é necessário um trabalho em rede. No caso da identificação e combate de violências não é diferente.
A lei 13.431/2017, conhecida como Lei da Escuta Protegida, garante o trabalho integrado da rede de proteção de crianças e adolescentes, que envolve Justiça, segurança pública, assistência social, escolas e serviços de saúde.
O objetivo é que a criança ou adolescente não tenha que contar diversas vezes o trauma vivido. “Hoje, a escola ou outro serviço identifica uma violação de direito, a criança é encaminhada para outro órgão e precisa contar de novo o que aconteceu com ela. Isso causa um impacto muito negativo numa pessoa que já é vítima de violência”, explica Natalia Valente, líder do Programa Enfrentamento a Violências.
Em agosto de 2021, o programa começou a desenvolver um projeto para colocar essa lei em prática no município de Campinas. O Município Livre de Violências contra Crianças e Adolescentes, realizado em parceria com a Childhood Brasil, está na fase de mobilização do poder público e de outros atores para que todos compactuem com o projeto.
“O projeto depende do aceite de todos os envolvidos. Para 2022, esperamos que a rede desenvolva um protocolo único de atendimento, capaz de acolher as crianças vítimas de violência de forma efetiva e eficaz”, almeja Natalia.
Combate a violências
Romper ciclos de violência não é simples, visto que os fatores são múltiplos e complexos. Quando a vítima é identificada, a sociedade se depara apenas com a ponta do iceberg.
O Enfretamento a Violências trabalha com alguns projetos que buscam contribuir, a longo prazo, para a redução das notificações relacionadas às violências contra as mulheres. É o caso do Repensando a Masculinidade, executado em parceria com a organização Direito de Ser.
O projeto começou em abril de 2020 e continuou neste ano. O objeto é atuar com 30 meninos e 30 meninas – de 6 a 14 anos –, provendo reflexões sobre papeis de gênero e questões ligadas à masculinidade.
“O projeto trabalha a perspectiva de desconstruir a masculinidade que conhecemos hoje, relacionada à opressão e poder. A gente sabe que, na violência de gênero, o autor é o homem, então precisamos conversar com os meninos sobre isso”, analisa a líder Natalia.
Outro projeto realizado neste ano, que atua no enfrentamento a violências, foi o Sintonizando na Transformação, em parceria com o Centro de Orientação ao Adolescente em Campinas (Comec). A iniciativa atende 20 adolescentes e jovens que já cumpriram ou estão acabando de cumprir medidas socioeducativas.
A proposta é oferecer novas perspectivas de mundo a eles, por meio de cursos de produção audiovisual e discussões de temas sociais, como machismo e violência policial. Os debates resultam em conteúdo para podcast, letras de músicas e outros materiais autorais.
Além disso, eles recebem um auxílio financeiro de R$ 350, a fim de estimular a ruptura com o mundo infracional. “Assim, o projeto também impacta as famílias dos jovens, à medida que busca a não reincidência e a construção de novos projetos de vida”, destaca Natalia Valente.
O projeto está em andamento, mas os impactos já são mensurados: dentre os participantes, 94% não reincidiram durante a execução da primeira fase do projeto, entre abril de 2020 e abril desse ano.
Retrospectiva 2021
Esta matéria faz parte da retrospectiva 2021 da Fundação FEAC. Leia as outras e confira os destaques que marcaram o ano:
• FEAC busca restabelecer laços comunitários de populações vulneráveis
• Solidariedade, voluntariado e apoio a OSC marcam o trabalho da FEAC em 2021
• Projetos da FEAC estimulam o desenvolvimento de territórios vulneráveis
• Em 2021, FEAC garantiu direitos de crianças, adolescentes e mulheres
Por Laíza Castanhari
![]() | Edição 12 – Trabalho voluntário + retrospectiva 2021• Os novos desafios e a virtualização do trabalho voluntário pós-pandemia
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